quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Retomando Rosa Lobato de Faria

Não queria deixar passar mais tempo sem me referir à minha vizinha, Rosa Lobato de Faria, e à sua partida.
Minha vizinha, porque vivíamos com poucos números de diferença, apesar de em ruas separadas, durante o meu tempo de Faculdade em Lisboa. No início da Calçada do Barbadinhos, soube um dia, por acaso que era uma das pessoas 'famosas' que lá vivia, entre a Anita Guerreiro, mais para os lado da Graça, ou a Sophia e a família dos Câmaras.
E, por outras andanças, cruzei-me com ela um dia no percurso normal de quem sai de casa porque há compras a fazer ou porque andar faz bem ou até porque um cafézinho a meio da tarde é muito bom... De óculos de sol, no seu porte de 'senhora', passou, discreta como sempre foi...
Dedicou-se a tudo: poesia, canções, romance, tudo, porque era uma humanista, nos múltiplos sentidos da palavra.
Lembro-me de uma colega, em Didáctica da Literatura com o Professor Fernando Pinto do Amaral, que sugeriu um livro dela: "As tranças de Inês". Além do mito português comum que a todos fascina, foi a apresentação da colega que me cativou e me chamou a atenção para ela.
Contudo, não foi este livro o primeiro que li dela, mas "A Alma Trocada". Muito bem escrito, com um enredo ágil nas peripécias, com uma capa rafaelita e que mostra que não tem de ser para se escrever sobre e como se fosse homossexual.
Um casal vive em Cascais, mas há idas à casa de campo da avó e a paixão pelo empregado da casa, Tinito, e toda uma série de situações que só se desvendam no final...
Deixo alguns excertos para ler e para homenagear a sua autora.

"Finalmente o prazer. Farrapos de fantasias eróticas de toda uma vida, numa espiral onde rodopiavam emoções, sensações, esquecimento próprio, loucura, aceitação do animal em mim, do grito, da fome, da liberdade de ser e saber que se é. Apesar. Mau grado. Não obstante. Que se lixe. Finalmente o prazer. Tantas vezes sonhado, imaginado, desejado, pressentido. Puro e irracional. Irresponsável. A fúria da descoberta e depois a paz. Essa paz desconhecida, completa, apaziguadora. Pela primeira vez na vida, a plenitude.
Dormi sobre isto e acordei feliz.

Hoje o computador não exorciza a minha angústia. É uma confusão de sentimentos complicada de mais. Não me quero focar no que principalmente me aflige e por isso, enquanto escrevo, tenho sempre aquele travão a segurar-me o livre fluir do pensamento. Tive a ilusão, na euforia dos acontecimentos da noite, que ia ser capaz de ser outro, mais corajoso, mais desinibido, mais eu mesmo. Como diz o Hugo, não podemos passar a vida a ser quem não somos e, nessa tentativa, confundirmos as coisas. Quem sou eu afinal? Porque é que sou tão infeliz? Hoje em dia todos sabem que se nasce homossexual como se nasce canhoto. Não é uma escolha. É até um lugar comum dizer-se que, se fosse, ninguém escolheria o caminho mais difícil.


O Hugo pode ajudar-me. Com a sua paciência, o seu sentido de humor. Ao pé dele tudo parece fácil, natural. Gostava de me sentar com ele à mesa dos meus pais e dizer, o Hugo é o meu namorado. Somos felizes juntos, a vida fica mais leve, é óptimo não ter que fingir. E os meus pais haviam de dizer, olá Hugo, seja bem-vindo.

Mas não é assim. Hão-de obrigar-me a mentir, a fingir, a desprezar-me, a perder a pouca auto-estima que me resta.



A sida é o anjo negro dos homossexuais. Embora se saiba que os hetero já nos ultrapassaram, vivemos no pânico de que um dia nos calhe a nós. Porque mesmo nos casamentos estáveis como o nosso há sempre uma traição, um deslize em dia de copos, uma loucura qualquer.


Eu não podia deixar de pensar no Tinito, porque não fazia ideia de quantas maluqueiras ele seria capaz e com ele jamais seria possível usar ou fazê-lo usar preservativo. Na nossa relação alucinada não cabia prudência, nem cuidado, nem medida. Seria uma espécie de ofensa, não a nós, mas à nossa paixão sem limite.
Como se, mais uma vez, fosse capaz de adivinhar os meus pensamentos, o Hugo disse
Jamais te atraiçoei e nunca poderei atraiçoar-te. Porque te amo tanto, porque te quero só a ti, que és o meu menino e o meu amor.
E eu, obrigado a dizer alguma coisa que rimasse com isto,
Eu sei Hugo, eu sei, não duvido de ti nem por um instante.
Não disse o que ele esperava ouvir
Também eu, Hugo, jamais serei capaz de te atraiçoar.
A verdade é que eu não achava que a minha infidelidade constituísse traição. Era uma coisa diferente, fora deste mundo organizado segundo regras muito precisas.
Era alguma coisa da matéria dos sonhos.



O Hugo estava à minha espera. Abraçou-me sem palavras, a disfarçar a emoção, ajudou-me com as malas, a azul-escura cheia de presentes, para ele, para a Estrela, para a Clara, para a Guidinha, roupas, perfumes, bijutarias, produtos de beleza, tudo com o fascínio acrescido das etiquetas de Paris. E percebi que estas pessoas são afinal a minha verdadeira família e que família é isso, é ter uma mala azul-escura cheia de embrulhos para um grupo ele pessoas que escolhemos sem as ter procurado, um grupo ele pessoas para quem fizemos compras só elo prazer de antecipar o seu sorriso.

É o que conheço mais próximo de oxálida, cítara, miligrã, phisalis, genciana, e a outra palavra que não encontrei, todas as outras que não encontrei, porque se alguma coisa a vida me ensinou, é que não importa encontrar a palavra. Tudo o que vale a pena, entre o mar e a terra, entre a luz e a sombra, entre a vida e a morte, é procurá-la.

Rosa Lobato de Faria » A Alma Trocada (Porto: Asa) » 2007 » p. 7, 27-28, 143-144,185-186

(retirados daqui: http://andmyman.blogspot.com/ )




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