quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Sociologia do livro e da leitura em 1928

Obviamente, das linhas que se seguirão pode-se esperar ver várias coisas, excepto um verdadeiro estudo sociológico da leitura e dos leitores. Nem seria esse o âmbito do autor – que se esconde num pseudónimo – deste texto, publicado em 1928. O que, naturalmente, encontramos aqui são caricaturas, aproximações, sempre inexactas e, por vezes, mesmo injustas, da realidade.

Tenhamos em conta que, em 1928, o mundo da leitura e dos leitores era, em Portugal, um mundo de privilegiados, um meio elitista. Em 1928, uma considerável percentagem da população portuguesa era analfabeta. O autor deste texto é um elemento desse mundo culto e que nas suas palavras se revela, aliás, como um bom conhecedor da literatura francesa. Os destinatários deste texto e os tipos sociais a quem nele se refere com uma certa ironia são também uma parte desse mesmo mundo a que ele pertence e que ironiza com a sua troça alegre.

A primeira observação a fazer é notar a proposição invertida: “Diz-me o que és, dir-te-ei o que lês…”. Na verdade, é a partir da observação dos hábitos do indivíduo (hábitos de leitura e não só, modo de vida, etc.) que se chegará a uma conclusão acerca da sua identidade. Não será muito acertado partir da suposta identidade do indivíduo (que nem sabemos quem é…) para se descobrir o que é que ele lê, se é que lê, porque há que admitir que existe quem não leia nada ou quase nada… Certo?

Admitindo desde já todo o teor preconceituoso desta “abordagem sociológica”, muito mais haveria a dizer sobre este texto. No entanto, dê-se alguma atenção a alguns aspectos aqui retratados, até porque não convém ferir susceptibilidades e é preciso continuar a contrariar muitos pensamentos injustos que têm sido livremente veiculados ao longo das décadas.

Notemos a injustiça que se verifica em relação às mulheres, aqui retratadas como seres ignorantes e essencialmente fúteis, como criaturas que estarão sempre incompletas enquanto não casarem e não tiverem filhos. Porque, nesta linha de pensamento, mulher que não dê à luz está a falhar quanto à única função para a qual veio ao mundo: procriar. Tudo o mais que a mulher faça é adorno inútil a emoldurar esse seu único destino para a vida. Em suma: a mulher poderá fazer muito do que lhe apetecer – ler ou não ler, inclusivamente –, mas jamais deverá falhar no seu dever de dar à luz.

Por último, mais uma outra observação, ainda a respeito da condição feminina: a sugestão subtil de uma mulher já estar envelhecida e no seu Outono por volta dos trinta anos! Só se forem mesmo as coitadas de 1928, enfim… Com a esperança de vida de então e o nível de vida que se vivia, talvez já estivessem velhas… Mas só o estariam quase de certeza por causa da vida que levavam: imensas casavam muito cedo, levavam uma vida de trabalhos e tareias dos maridos, passavam quase toda a vida ou a ter muitos filhos, por vezes indesejados, ou a sofrer (ou a fazer) muitos abortos… Enfim… Uma vida triste que envelhecia as mulheres à força. Não seria aquela idade em si a envelhecer as mulheres.

Acrescento ainda que divulgo este texto somente como uma curiosidade da época e espero que se divirtam a lê-lo, tal como eu me diverti um pouco… Este texto não espelha o meu pensamento.

Diz-me quem és, dir-te-ei o que lês…


Prosa de Ariel

O velho asserto popular – “Diz-me com quem lidas, dir-te-ei as manhas que tens!” – é susceptível de modificações de toda a guisa, consoante as preferências ou birras de cada um. Para o gastrónomo, cuja vida de relação é sempre determinada pelas pupilas do gosto e [pel]os movimentos dos intestinos, o provérbio célebre desandará logo em:
– Diz-me o que comes e eu te direi o que vales!

Imediatamente porém, os amadores do belo sexo, tomando à sua conta o autêntico Asmodeu que é o rifão a que nos reportamos, exclamarão imensamente convictos:
– Diz-nos como é a pequena e nós te diremos a sorte que te espera!...

Os políticos, esses também o usam à sua moda:
– Diz-nos o partido que segues e nós te diremos se és ou não ladrão de ti mesmo!

Nós cá temo-lo usado sempre como nos tem dado na real gana: este rifão é pau para toda a colher e não lhe leva a palma o soberbo macacão da história que de navalha fez sardinha, da sardinha fez viola e assim conseguiu, parece, ir parar a Angola como alto comissário… Riquíssimo, opíparo, suculento provérbio!... Vamos nós lá a aproveitar a deixa:
– Diz-nos quem és… e nós te diremos o que lês!...

IRONIA E PIEDADE…

Mas, antes de analisarmos as profissões e consequentes tendências de cada um em matéria de leitura, fique desde já assente que as próprias ironias caídas dos bicos da pena por sobre o papel virão temperadas pela maior indulgência… Tout comprendre c’est tout pardonner! – escreveu a Staël, num impulso inegável de bondade… Podem-se contar as alegrias da vida, mas as dores, santo Deus, não há algarismos que lhes bastem! A tragédia que cada um traz consigo, desde o berço até aos clássicos e desconsoladores sete palmos de terra que nos concede o município, essa tragédia leva-nos a tantas misérias, coloca todos nós entre tantas contingências mesquinhas e dolorosas que o comentário escarninho seria uma falta de caridade…

Ironia e piedade, eis o que se requer para que não descambemos em torvo censor – aquele censor descaroável que já Marcial assinalava lumine fuscus – de olhar torto…

Compreendamos tudo para tudo perdoar… e nos ser perdoado também!...

O QUE LÊEM AS SOLTEIRONAS

Temos primeiro que tudo a solteirona… Para com ela – e também para com a mulher casada que sente fugir-lhe a mocidade! – usemos da comiseração que se depreende das palavras de Staël…

A solteirona em geral não lê: tem uma dúzia de gatos reboludos e dedica aos filhos das outras pessoas os carinhos que a sorte lhe não permitiu [que] dedicasse aos que deveria ter tido… É uma vida desconsolada, quase inútil, entre os folhetins d’O Século e as preces a Santo António casamenteiro para que faça mais um milagre…

Nem mesmo os romances e fascículos lhe interessam talvez o coração… Fora do Michel Zévaco a três tostões diários, a solteirona pouco – ou quiçá coisa nenhuma – lê, a não ser o livro de missa…

Isto pelo que toca à enorme maioria das solteironas portuguesas. Às vezes, porém, dá-se o caso de ela armar em escritora e então ficamos em frente de duas subdivisões: a das feministas e a das literatas. Todas elas, porém, não passam, em última análise, de pobres criaturinhas, de petites âmes, esclaves fremissantes de la sensation, como as classifica o desdém, barbeado e fino, de Barrès… Os desenganos de que é portador o carcás de Cupido, centímetro e meio a mais de nariz, ou a necessidade de estender aboizes a uma colocação qualquer, levam-nas a atitudes e leituras com as quais, lá no íntimo, se desconsolam.

A feminista lê a produção barata do livre pensadeirismo, as obras desconchavadas de vários figurões de muitíssima treta que anseiam pelo amor livre para se poderem governar, lê as obras de vulgarização sociológica ou filosófica e propina tudo isso depois, muito mal digerido, em artigos de jornal ou teses de congresso… Mas o seu ateísmo, as suas ânsias de libertação do jugo masculino, a sua pregação do amor livre, não passam de uma forma, intimamente dolorosa, de protestar contra o abandono a que a votou o amor…

Apareça um Adão que se preste e ela lhe lançará logo ao pescoço uns braços que ardem por dar abraços; dar-lhe-á uma boquita cujos beijos implicarão uma sempre desejada renúncia de direitos e reivindicações…

O casamento é o maior flagelo do feminismo…

A LITERATA E OS ZÂNGÃOS… – TRISTE COISA É SER MULHER!

Quanto às literatas, o caso, a bem dizer, só muito superficialmente muda de aspecto… Fingem não se preocupar com o feminismo, com Deus, com o papel da mulher, etc., e escrevem, escrevem, escrevem, na maior parte das vezes coisas que ninguém lê… Perpetram livros de versos, volumes de crónicas e pecitas de teatro… Morrem por ver o seu nome em letra de forma e massacram a paciência de toda a gente com os anseios da sua alma, as tendências frescais da sua carne, os amuos com um Adónis que muita vez só existe em sonhos ou as quedas subsequentes com um terno amador que a tudo poderá aspirar menos a versos… A tal respeito muito haveria a escrever em desabono do meu sexo, leitoras!... Porque o homem que sinta uma literata armar-lhe as redes só lhe aturará as produções líricas enquanto não vir possibilidade de chegar a resultados mais prosaicos… Triste coisa o ser mulher!

Se ouvirem uma literata falar em Kant, Proudhon, Taine, etc. e tal, não acreditem que ela se tenha dado a tão engasgantes leituras: tudo aquilo é para deslumbrar. A literata não conhece senão romances franceses de capa amarela, revistas femininas de futilidades literárias, as obras de Colette, da Gyp, da grande cabotina que é a Delarue-Mardrus, os versos da Condessa de Noailles e os do Paul Géraldy. Se ler Correia de Oliveira, não o percebe, como igualmente não perceberá o sentido lusitanista da obra do poeta das Ilhas de Bruma… Os seus versos, dela, ou imitam plangências sozistas expondo dores e agonias que não sente ou entram pelos domínios velados e mornos de Cupido. Porque, para a literata, tudo quanto não seja pôr em liberdade o subconsciente, obedecer com passividade às solicitações da sensação e dos nervos constituirá para ela uma impossibilidade tão manifesta como para o homem descobrir as Índias num tempo em que já não há continentes a desvendar…

A CANSADA VIDA DAS SENHORAS ELEGANTES!... DEKOBRA E VASCONCELOS E SÁ…

A dama de sociedade… Acorda às onze, espreguiça-se voluptuosamente e consulta a carteirinha de lembranças aonde se consigna o seu penoso afã de cada dia. Toma banho às onze e meia e entrega-se depois à manucure. Ao meio-dia lê Maurice Dekobra, leitura suculenta que se prolonga até à hora do almoço, aí pelas duas da tarde. Ao ir para a mesa topa no patamar com o marido, que recolheu às quatro da madrugada da pândega no Tauromáquico e se prepara para recolher no dia seguinte às oito da manhã… Tem modista das três às quatro da tarde; às quatro e meia visita as Guedes e escuta os potins da Marques ou da Garrett das cinco às seis e tal. Às sete em casa, nova leitura do Dekobra: janta às oito, começa-se a vestir às nove, entra no teatro às dez e meia, deita-se à uma da madrugada e recomeça às onze da manhã a sua extenuante labuta…

Resultado: aparte o Dekobra ou qualquer outro livrito de igual substância, só lhe resta tempo para as crónicas do Sr. Júlio Dantas ou do Sr. Oliveira Guimarães.

Sinal característico: usa muito o livro dos telefones e ser-lhe-ia mais fácil morrer de fome do que deixar de ler as resenhas elegantes do Vasconcelos e Sá!...

O MARIDO DA SENHORA DE SOCIEDADE: MENUS DO BRÍSTOL E RELATÓRIOS DE BANCOS

Mas o marido da mulher elegante não é melhor do que ela, vamos lá!... Se está enfronhado em negócios, as suas leituras não vão além dos relatórios do Banco de Portugal ou das actas das sociedades de comércio a cujos corpos gerentes pertence. Leitura de poetas ou de artistas não a conhece: se é talassa, lê o Correio da Manhã, se é republicano, lê o Rebate – e, às vezes, assina ambos, que é para não descontentar nem gregos nem troianos. Em questões de negócio não olha a ideias políticas, porque todas lhe servem!...

Dado, porém, que não tenha negócios e viva do que os rendeiros lhe enviam pontualmente, é com pontualidade que se deixa roubar pelos ditos rendeiros e o seu habitat favorito é o Tauromáquico, o Turf e os clubes de batota aonde come, bebe e dança até fechar o estabelecimento… Não tem tempo para leituras e os livros que lhe oferecem os amigos saem tão virgens das mãos dele como as tias Camelas da boémia coimbrã… Quanto muito, as futilidades da capa amarela chegam para lhe alimentar a sede de ideal. Almoça, janta e ceia nos clubes, visita a Lola ou a Gaby e, às vezes, nem sequer se lembra de que tem mulher em casa. Esta paga-lhe na mesma moeda, esquecendo-se dele.

Resultado: não lê livros. As suas leituras favoritas são os menus do Brístol ou do Maxim’s, os programas de variedades ou os reclamos a artistas ligeiras. Não lhe chega o tempo para mais. E já não é pouco!...

O DILEMA DOS MÉDICOS E ADVOGADOS

Se é médico ou advogado, também não se dedica a fortes leituras da sua especialidade. Serve-lhe, para esfolar os clientes, aquilo que aprendeu na Universidade. O dilema para ele é este: ou estudar ou ganhar dinheiro: prefere a última forma. Lê os jornais franceses e, se pilha uma aberta no afã das minutas de agravo ou nos récipes do consultório, vá lá uma digressãozita pela literatura francesa com os seus entrechos girando sempre à roda duma cama à trois. E disse! Pierre Benoît, Clement Vautel e Maurice Dekobra contentam o seu espírito. Goethe, Racine ou Shakespeare são-lhe tão desconhecidos como Gama Barros, Guilherme Moreira ou os grandes escritores do seu país.

Conclusão: não lê. Poderá ser um espírito brilhante, mas a sua ignorância, em geral, é enciclopédica. Há excepções, mas essas, bem o sabem os senhores, só servem para confirmar a regra!

O QUE LÊEM AS MUNDANAS

É uma léria julgar que as mundanas lêem quaisquer obras que se prendam com a sua triste profissão de pescadoras dum homem ocioso. Por via de regra, a mundana não lê coisíssima nenhuma. Come e bebe; veste-se, despe-se, dorme, torna a comer, torna a beber, torna a vestir-se e a despir-se e a dormir. Se lhe restam lazeres propícios para manuseio de livros, a desventurada, cuja educação é por demais rudimentar, tem por pábulo do seu espírito os romances portugueses baratos e de entrechos estúpidos até fazer doer. Não lê tal, como já erroneamente ouvi afirmar, obras licenciosas: o seu espírito, a tal respeito, possui a castidade que falta ao corpo. O que poderá ler é romances a fascículos que há uns vinte ou trinta anos circulavam por todos os lares de meia tigela: a Casta e desonrada, do Mérouvel, creio eu; A pecadora e A perdição da mulher, do Pérez Escrich; o Romance duma operária, do Luís do Val, As aventureiras parisienses do Pierre Sales e toda a lixarada dos Richebourg, George Ohnet, Montépin, Ponson du Terrail, etc., na maioria das vezes emprestados estes abortos literários pela vizinha do lado. Em tempos, as mundanas liam bastante também o Paulo de Kock, se calhar para distrair um pouco das contas da modista…

Mas a sua mais constante leitura é a dos reclamos de produtos de beleza…

A DONA DE CASA E A TRAGÉDIA DA VELHICE

Entre aqueles portugueses que fazem vida de lar, consideremos a esposa, a filha, o filho e o marido. Com uma educação deficientíssima, imbuídos todos ainda de estreme romantismo, as suas leituras são resumidíssimas, quase nulas mesmo. Se em casa houver uma estante de livros quase poderemos afirmar que estes estão nas condições dos do Cardeal da Cunha, aos quais certo malicioso chamava as “onze mil virgens”… A esposa ou trata do governo da casa e não tem, portanto, lazeres propícios a leituras ou então os seus conhecimentos literários resumem-se aos folhetins d’O Século, do Diário de Notícias e da Voz. Se tem criadas que a libertem de afazeres, lê talvez do Camilo o que ele tiver de pior e não dispensa também qualquer dos quotidianos que deixo citados. Se tem um espírito um pouco delicado e se nele se começa a desenhar a tragédia das primeiras rugas e dos cabelos brancos, lê avidamente o Diário de Notícias, secção de cosméticos e pomadas… Ai a tragédia das patas de galinha, dos lábios murchos, dos lábios apagados já!... É então talvez que o seu espírito se começa a interessar por A mulher de fogo do Bélot; A mulher de trinta anos, do Balzac, L’automne d’une femme do Prévost, os romances do Maupassant, do Pérez Escrich… Mas a sua leitura predilecta será a dos livros ou jornais que ensinem a prender um maridinho, se calhar já “calaceiro de criadas” – como diz o D. Francisco Manuel de Melo – e maridinho esse que, valha a verdade – tristezas desta vida! –, está mortinho por que a esposa o deixe em paz…

A MENINA CASADOIRA E OS SONHOS DA SUA ALMA BEATA

Quanto à filha, essa foi talvez uma boa aluna do Liceu ou do Conservatório aí até à roda dos treze anos. Depois relaxou o espírito, começou secretamente a mandar para o diabo os estudos e a deixar os seus olhos meninos passearem pelas montras de modas e sapatarias. As suas ocupações são: fingir que estuda ou estudar apenas o suficiente para o papá e a mamã não darem pela marosca; ir a cinemas e a modistas de vestidos e de chapéus. Lê folhetins à razão de três tostões diários; lê George Ohnet e todos os romances da mamã, chorando um bocadinho com o Camilo e construindo paixões como as que vêm nos livros do nosso grande estilista; desadora os poetas e prefere os cronistas mundanos; devora as revistas femininas e de modas, e disse. O Garrett desconhece-o inteiramente, como de resto sucede à grande maioria dos portugueses, e substitui-o, a seu ver com vantagem, pelo Louis Noir, Michel Zévaco, Adolphe Bélot e o Ponson…

O MENINO DO LICEU, FENÓMENO CABELUDO OU POLICIAL: LITERATURAS PREFERIDAS

O mano da menina, esse então possui uma psicologia muito especial… Se Nosso Senhor o dotou com uma certa queda para versalhadas, entra como um catita pelo António Nobre e anseia por uma tísica, por umas olheiras e uma tossezinha que lhe dêem um ar romântico de incompreendido. E o lar assiste então ao aparecimento dum fenómeno cabeludo que perpetra monstrozinhos líricos dignos de muito chinelo. Mas o menino é, no dizer dos papás, um ser à parte e exibe-se em saraus recitando composições da sua lavra, que as madamas aplaudem, até que uma raposa venha coroar os estudos liceais e o Banco de Portugal premeie o moço poeta com um lugar de praticante de contas de somar. De então por diante, as suas leituras não diferem sensivelmente das da mamã, do papá, da mana e das tias.

Se, porém, não delinquiu nos versos, as suas leituras favoritas são o Nick Carter, As aventuras do Capitão Morgan, O mistério da casa amarela, As aventuras dum polícia amador, os romances de Júlio Verne, do Gustave Aimard, do Fenimore Cooper e a multidão espantosa dos folhetos do género. Às vezes, para sua desgraça, conhece às mil maravilhas os livros do Alfredo Gallis…

Mas aquilo que ele conhece melhor que tudo é a literatura particular dos estudos, o Index Cabulorum Prohibitorum, se me permitem o latim de Palito Métrico… O esperançoso rebento sabe por experiência própria que, além das traduções justalineares do Fedro, do Júlio César e do Horácio, da Selecta Francesa e do English Reader, há os seguintes e preciosos auxiliares do aluno estudioso:
a cábula vulgar (escrita no próprio livro);
a cábula de realejo;
a cábula de relógio;
a cábula de esticão (desaparece pelo punho, quando vem o professor);
a cábula de punhos de camisa;
a cábula de arremesso.

Etc. e tal: muitas outras mais que eu desconheço e vós sabeis!...

O OPERÁRIO: O QUE ELE ERA E O QUE ELE CONTINUA A SER

A avó lê folhetins de jornais, o avô lê artigos políticos. Às vezes a avó lê o seu livro de orações; o avô não está para isso: prefere as considerações profundas do Sr. Carvalho da Silva acerca da lei do inquilinato ou o cultivo do boato. E disse!...

Temos por último o operário. É credor da nossa especial simpatia, porque, na maioria das vezes, enorme é o seu desejo de saber alguma coisa… Mas as circunstâncias da sua vida em geral não lhe permitem esse luxo. Só pode frequentar as bibliotecas municipais, encharcando-se de velharias sociológicas dignas das baratas e musaranhos. Lê A Voz do Operário e lia muitíssimo A Batalha. Lê também, por compra, a Biblioteca de Instrução Profissional, os artigos políticos dos quotidianos e as publicações incendiárias. Em tempos que já lá vão, era um autêntico dogue contra aquilo a que chamava, depreciativamente, a padralhada e a bispalhada, os jasuítas e os masmarros; devorava e decorava publicações anticlericais e anarqueiras: A visão de Jesus, do Campos Júnior, a quem Deus tenha perdoado; A conquista do pão, da bondosíssima criatura que foi o Príncipe Kropotkine, os romances de Gorki e do Tolstoi, os livros de Sébastien Faure, do Ingegnieros, do Zola, etc. Hoje está um pouco mudado: já não fala tão mal dos padres, mas é bolchevista – sem saber nada do bolchevismo, é claro! A sua educação continua a ser aquilo que sempre foi, isto é: deficientíssima.

BALANÇO GERAL: IGNORÂNCIA E EXIBICIONISMO

Quanto ao resto da população, não lê ou dedica os seus ócios a jornais e a publicações de reduzida importância. As actrizes e actores, em geral, limitam-se à leitura dos seus papéis, os músicos não lêem nada, os pintores idem ou quase. Em Portugal há quem compre livros, sim, mas para os pôr na estante. Os leilões de obras raras atingem, por vezes, preços exorbitantes, dignos do falecido Monteiro Milhões. Mas triste é confessá-lo: esses livros servem depois apenas para exibir diante de amigos: há a mania da colecção completa, porém não o desejo de ler. Há quem dê contos de réis por edições princeps d’Os Lusíadas sem conceder dois minutos por ano ao épico lusitano: três contos vi eu dar por uma detestável poesia do Camilo, simplesmente porque era raríssima e dava tom a uma biblioteca!

Misérias dum povo por demais ignorante e de cuja educação, a sério, nunca ninguém cuidou! E aqui têm os leitores o que se passa em terras portuguesas, a respeito de livros. Diz-me o que és, dir-te-ei o que lês!

ARIEL.


ARIEL. “Diz-me Quem És, Dir-te-ei o Que Lês…”, Magazine Bertrand, 2.ª série – ano II, n.º 21, Setembro de 1928, Lisboa, Livrarias Aillaud e Bertrand; pp. 38 – 47.

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