sexta-feira, 4 de abril de 2008

Juízo final - O futuro no YouTube

No passado fim-de-semana, houve festa aqui em casa. A festa chamou pessoas e, a reboque das pessoas, crianças. Em minutos, as crianças aborreceram-se e reclamaram entretenimento. Na falta de palhaços, alguém se apressou a entretê-las com um DVD dos Simpsons, sintonizado na grotesca dobragem portuguesa e aos berros. Questionei os progenitores sobre a necessidade da dobragem e responderam-me, com bons modos, que as crianças (de 8 ou 9 anos) não acompanham legendas. Perguntei sobre a necessidade dos berros e responderam-me, com modos óptimos, que a minha intolerância é, basicamente, intolerável. Pelo menos foi o que me pareceu, já que a estridente voz portuguesa de Homer Simpson se sobrepunha a qualquer diálogo racional. Desisti. A voz gritou noite fora, fiel a quem realmente manda.

O episódio, desgraçadamente banal, lembra-me o vídeo da professora, da aluna e do telemóvel, que espantou e "chocou" metade do País. Dada a frequência de balbúrdias semelhantes, não percebi o espanto. A única criatura legitimamente surpreendida deveria ser a aluna, que por uma raríssima vez viu as suas exigências recusadas. Ao tentar negá-las, a professora de Francês violou uma regra sagrada da sociabilidade contemporânea: a uma criança nada se recusa. É verdade que a criança do Carolina Michaëlis tem 15 anos, mas a infância tornou-se um conceito lato, que se prolonga até os petizes descobrirem que o mundo não se encontra feito à medida deles.

Em tempos não demasiado remotos, essa era uma descoberta quase imediata. A escola prolongava o lar enquanto espaço de hierarquias, no qual o docente falava e a criança ouvia ou fingia que ouvia. Hoje, a escola pública prolonga o lar enquanto pandemónio democrático, onde as crianças (e os pais, e a "comunidade") têm direito a exprimir a sua "opinião" e, no fundo, a fazer o que a ignorância da idade lhes recomenda.

Protegidas por hordas de malucos para quem a autoridade é sinónimo de fascismo, as crianças vão fazendo. Um dia (tardio) crescem, a feia realidade desaba-lhes em cima e a ilusão democrática esvai-se. É aí que se voltam em lágrimas para os paizinhos (com pesar destes) ou, mais provavelmente, para o Estado (com pesar nosso). Uma coisa, assaz repetida ultimamente, é certa: o vídeo do "Carolina" não reflecte o ensino. Reflecte o País. O País presente e, se tivermos o azar de lá chegar, o futuro.


ALBERTO GONÇALVES - Sociólogo


in Sábado, n.º 205, 3 de Abril de 2008; p. 122.

4 comentários:

  1. Bem dito.

    Ainda bem que na minha infância e na minha adolescência aprendi o gosto amargo do "não". Esse "não" muitas vezes incompreendido, mas necessário (como já na altura o sabia), e que me foi preparando para os "não's" que a vida hoje me oferece.

    Boa semana, amigos!

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  2. Olá!

    Pois é... Se não sabemos educar as crianças e os jovens, não adianta muito puni-los, pois não compreenderão o castigo, num mundo onde muito se concede, se permite e se facilita às crianças e aos jovens, só porque são crianças e jovens.

    Sem autoridade e sem os fazer tomar consciência de palavras estranhas como "respeito" ou "responsabilidade", não só o castigo não resulta, como reincidem.

    E não me venham dizer que eles não percebem, porque são pequenos. Se sabem muito mais do que os mais velhos sobre computadores, videjogos e telemóveis e demais tecnologias de ponta, também têm inteligência para o resto.

    Boa semana a todos!

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  3. Erro meu em cima: leia-se "videojogos".

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  4. Belo texto... e muito pertinente actualmente!...

    Relembro que autoridade vem de auctor, que significa "o que ajuda a crescer"... Mas hoje em dia, pais e professores, educadores em geral, parecem fugir desta palavra e de todas as acções que se abrigam na sombra da sua definição.

    Às vezes penso que se perdeu algo no 25 de Abril... parece que ganhámos liberdade mas à custa do sacrifício de alguns valores defendidos pelo Estado Novo...

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