segunda-feira, 11 de junho de 2007

O corpo ao espelho (2)


My First Menstruation; My First Menstruation II (1999)
Ana Elena Pena
Não raro, quando, entre os íntimos da casa, se deblaterava sobre o futuro da esplêndida criança, e alguém comovidamente aventava quanto seria essencial alcançar-lhe um bom casamento, logo o pai Eusébio atalhava, olhando-a carinhoso e descaindo o lábio incrédulo:
- Casar, quem? Isto?...
E num leve jeito tocava com a mão trémula a face grave e espiritual da filha.
Susana baixava os olhos, serena e impenetrável, sem nada contestar. Ao que, admirativamente, o pai:
- O quê! Pois tu não protestas? Não dizes nada?

Por única resposta, Susana, sempre de pálpebra baixa, erguia os ombros, num significativo ar, mais do que de passiva conformidade, de resignada e total indiferença.
É que, perante a inalterável compostura da sua alma, doce e tranquila, a ideia do casamento era mais uma destas forçadas obrigações morais impostas pelo equilíbrio da estrutura social, mais uma das escoras convencionais à dignidade humana, mais um destes mansos sacrifícios a cuja dura prova nos vota inapelavelmente o mundo. Não o apetecia, repugnava-lhe mesmo fundamentalmente; mas - que remédio teria ela! - não se revoltava contra a hipótese de ter que o aceitar um dia. Entretanto, fazia por adiar, quanto possível, pelo que lhe dizia respeito, essa brutal imposição; e, a ter que ferir-se o holocausto da sua virgindade, Susana protestava intimamente que essa forçada sujeição sexual em nada tolheria o voo altivo e alheio da sua alma.
(...)
Certo era que o seu temperamento melindroso fugia por instinto ao trato bestial dos homens, à brutalidade material das coisas. A sua organização subtilizada e débil formava antítese moral com o giro grosseiro e trivial da vida. Nem sujeições, nem contactos. Toda a sorte de constrangimento lhe espertinava vivamente a sensibilidade. O menor excesso de objectiva aplicação, contrária ao seu desejo, bastava a morder-lhe os nervos numa irritação dolorosa e aguda, que a sua alma resignada e mansa escrupulizava por não deixar deflagrar em impaciência. Pela aristocrática essência do carácter e pela fidalga educação do espírito, Susana queria o mundo todo como que muito abaixo e muito longe do círculo alto e isento em que a sua auroral existência se fechava.
O aparecimento da primeira crise catamenial foi para ela um acontecimento desolador, confrangeu-se no desgosto mais profundo. Pô-la deveras doente e arrancou-lhe rios convulsos de lágrimas essa desagradável revelação, sanguinolenta e estúpida, que viria de ora avante periodicamente afirmar-lhe a preponderância da fêmea sobre a mulher, a miséria carnal da espécie, e que era o sujo traço fatal da sua união com a matéria... Passava de ordinário os dias, rodeada de mimos, como uma cara flor de estufa, inactiva e cismando em pequenos nadas, preenchendo a seu inteiro aprazimento as horas. Era uma espécie de anjo tutelar, cuja transcendente e única missão se cifrava - a contento do amor absorvente do pai e da negligente distracção materna - em perfumar com o seu encanto espiritual, divagando e sonhando, a casa toda. Assim, senhora deste incondicional despotismo afectivo, Susana fugia as mais das vezes a aparecer no salão e evitava as visitas, ainda mesmo em riscos de afrontar os preceitos mais triviais da civilidade; preferindo ir vaguear atoadamente pelo parque, isolar-se, horas perdidas, desarrumando e arrumando gavetas, no calmo silêncio do seu quarto, ou então entreter-se, posta sempre em respeito, de futilidades infantis com as criadas.
BOTELHO, Abel. Fatal Dilema, texto estabelecido por Justino Mendes de Almeida, Porto, Lello & Irmão - Editores, 1983; pp. 101 - 104.

2 comentários:

  1. Como diz uma grande amiga minha :), "Bem...!"
    Muitos comentários às fotos que apresentas, mas sem palavras para os exprimir... Chamaste a atenção, Hera! (para este blogue, que anda a ser muito pouco concorrido... :(
    Ubi estis, Lucernae socii?

    Gostei da escrita do "teu" Abel Botelho. Espero que a tese esteja a correr bem!

    Apresentem propostas de datas para o nosso encontro. Já apresentei a minha no comentário ao post anterior: 14/15 de Julho. Mais cedo? Mais tarde?

    Boa noite! / Bom dia!

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  2. Minha querida Clio,

    o trabalho da tese vai devagar, mas vai... O Abel Botelho é um grande escritor - não há dúvida.

    A minha sugestão para um próximo encontro está num comentário num post mais abaixo.

    Boa tarde!

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