domingo, 11 de março de 2007

Retrato de antepassados - Crónica de Saramago



















«Nunca fui afecto a essa vaidade necrófila que leva tanta gente a pesquisar o passado e os que passaram, buscando os ramos e os enxertos da árvore que nenhuma botânica menciona - a genealógica. Entendo que cada um de nós é, acima de tudo, filho das suas obras, daquilo que vai fazendo durante o tempo que cá anda. Saber donde vimos e quem nos gerou, apenas nos dá um pouco mais de firmeza civil, apenas concede uma espécie de alforria para a qual em nada contribuímos, mas que poupa respostas embaraçosas e olhares mais curiosos do que a boa educação haveria de permitir. Ser filho de alguém bastante conhecido para que não fiquem em branco as linhas do cartão de identidade, é como vir ao mundo carimbado e com salvo-conduto.


Para mim, nada me incomoda saber que para lá da terceira geração reinam as trevas completas. É como se os meus avós houvessem nascido por geração espontânea num mundo já todo formado, do qual não tinham qualquer responsabilidade: o mal e o bem eram obra alheia que a eles só competia tomar nas mãos inocentes.

(...)

Um avô berbere, um outro avô posto na roda (filho oculto de uma duquesa, quem sabe?), uma avó maravilhosamente bela, uns pais graves e formosos, uma flor no retrato - que mais genealogia me importa? a que melhor árvore poderei encostar-me?»






José Saramago, A Bagagem do Viajante - Crónicas,


Lisboa, Caminho, 1986

2 comentários:

  1. Excerto muito interessante! Exactamente: cada um é o que faz. De onde veio ou quem a gerou nada deve acrescentar ou tirar à pessoa com quem deparamos, com quem convivemos dia-a-dia... pessoa essa que nos confirma (ou não), nas suas próprias acções, que é um belo ser.

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  2. Contudo, não deves esquecer que és muito por causa de onde vens, o que não limita, em caso algum, aonde podemos chegar...

    adorei o excerto, Ariadne, e fico muito feliz por este "ponto de encontro" não estar parado...
    mas também já esteve com mais vida...

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