sábado, 3 de março de 2007

Pessoa e os seus heterónimos

Os heterónimos existem portanto, mas dentro de Pessoa. Eles são os rostos (as «máscaras») que ele assume sucessivamente para melhor exprimir o seu ser. Para o leitor de boa-fé, cada um deles tem uma personalidade autónoma, mas, se fizermos dos textos uma leitura por pouco crítica que seja, poderemos facilmente desmascará-los. E o poeta quis que fosse possível fazê-lo. Podemos ser tentados a lê-los no primeiro grau, a crer na inocência de Caeiro, na serenidade de Reis, na alegria de viver de Campos. Mas o leitor vigilante apercebe-se imediatamente de que estes textos estão armadilhados. E imediatamente: os primeiros versos do primeiro poema do Guardador de Rebanhos, que abre as Ficções do Interlúdio, anunciam a cor:

«Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor…» 1

O próprio autor nos previne: tudo o que se segue deve ser lido no segundo grau. As personalidades dos heterónimos são ao mesmo tempo autênticas e metafóricas. É de facto Caeiro, ou Reis, ou Campos, que nos fala, e em breve nos vamos habituar a reconhecer a maneira de pensar, a escrita, a tonalidade, a «voz» de cada um, que não se assemelha a nenhuma das outras. Contudo, também se ouve bem a «voz» de Pessoa presente em todas essas vozes. A inocência, a serenidade ou a alegria são o efeito de uma retracção da consciência em si mesma, e é através de um desdobramento suplementar que ele faz disso o poema que nos é dado ver e ouvir. Conheço leitores que se recusam a entrar nesse jogo e preferem, através de uma leitura ingénua, ficar na companhia de Caeiro, de Reis ou de Campos, tal como se espera que cada um seja: inocente, sereno, alegre. Eles perdem o que faz o encanto único e talvez a verdade de toda esta parte da obra de Pessoa: dir-se-ia que o poeta heterónimo canta, e que o seu criador o acompanha em surdina, como um «baixo contínuo», para que não o esqueçam.

1 in CAEIRO, Alberto, Poemas, Edições Ática, Lisboa, 1952.

BRÉCHON, Robert, Estranho Estrangeiro. Uma biografia de Fernando Pessoa, trad. de Maria Abreu e Pedro Tamen, Lisboa, Quetzal Editores, 1996, pp. 222-223.

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