domingo, 25 de março de 2007

Devorando o mundo



(...) «Cenouras de encher o olho, a dois soldos o molho!» «Oh!», exclamou Albertine, «couves, cenouras, laranjas. Tudo coisas que me apetece comer. Mande a Françoise comprar. E ela que faça cenouras com natas. Além disso, será um gosto comer tudo aquilo junto. Serão todos os ruídos que estamos a ouvir transformados numa boa refeição. Ah, peço-lhe, diga à Françoise que faça antes uma raia com molho de manteiga. É tão bom!» «Queridinha, está combinado, não se demore mais, que, se não, vai pedir tudo o que as vendedeiras de hortaliça apregoam.» «Está dito, vou-me embora, mas daqui em diante só quero para os nossos jantares coisas que tenhamos ouvido apregoar. É muito divertido. Pensar que ainda faltam dois meses para ouvirmos: "Feijão-verde tenrinho, olha o feijão-verde!" Que bem dito: "Feijão tenrinho." Sabe que eu os quero fininhos, muito finos, a escorrer vinagrete, nem parece que os comemos, são frescos como o orvalho. Infelizmente acontece o mesmo que se passa com os queijinhos frescos, ainda vêm longe: "Bons queijinhos frescos, olha os queijinhos!" E a uva branca de Fontainebleau: "Olha a bela uva branca!"» E eu pensava com susto em todo o tempo que teria que ficar com ela até chegar a uva branca. «Olhe que eu digo que daqui em diante só quero as coisas que tenhamos ouvido apregoar, mas é claro que abro excepções. Por isso não seria nada impossível que eu passasse pelo Rebattet a comprar um gelado para nós os dois. Vai dizer-me que ainda não é a época, mas apetece-me tanto!» Senti-me agitado pelo projecto do Rebattet, que se tornara mais certo e mais suspeito para mim por causa das palavras: «não seria nada impossível». Era o dia em que os Verdurin recebiam, e desde que Swann lhes ensinara que aquela era a melhor casa, era no Rebattet que eles compravam gelados e bolinhos de chá. «Não tenho nada contra um gelado, Albertine querida, mas deixe ser eu a comprar-lho, não sei se será no Poiré-Blanche, no Rebattet, no Ritz, enfim, hei-de ver.» «Então vai sair», disse-me ela num tom desconfiado. Afirmava sempre que ficaria encantada se eu saísse mais, mas se uma palavra minha desse a entender que não ficaria em casa, o seu ar inquieto levava a pensar que a alegria que teria se me visse sair constantemente talvez não fosse muito sincera. «Talvez saia e talvez não, bem sabe que nunca faço projectos antecipadamente. Seja como for, os gelados não são uma coisa que se apregoa, que ande pelas ruas, porque é que os quer?» E então respondeu-me com estas palavras que efectivamente me mostraram quanta inteligência e gosto latente nela se haviam de repente desenvolvido desde Balbec, com estas palavras do género das que eu pretendia deverem-se apenas à minha influência, à constante coabitação comigo, estas palavras que, no entanto, eu nunca teria dito, como se alguma proibição me fosse feita por algum desconhecido de nunca usar formas literárias na conversa. Talvez o futuro não viesse a ser o mesmo para Albertine e para mim. Quase tive esse pressentimento quando a vi apressar-se a utilizar oralmente imagens tão escritas e que me pareciam reservadas para outro uso mais sagrado e que eu ignorava ainda. Disse-me ela (e apesar de tudo senti-me profundamente enternecido porque pensei: «É claro que não seria capaz de falar como ela, mas todavia, se não fosse eu, ela não falaria assim, sofreu profundamente a minha influência, e portanto não pode deixar de amar-me, ela é obra minha»): «Aquilo de que gosto nos alimentos apregoados na rua é que uma coisa ouvida, como uma rapsódia, à mesa muda de natureza e dirige-se ao meu paladar. No caso dos gelados (porque espero bem que só me compre dos que vêm naqueles moldes que já não se usam e que têm todas as formas possíveis de arquitectura), de cada vez que como um, templos, igrejas, obeliscos, rochedos, é como que uma geografia pitoresca que começo por contemplar e cujos monumentos de framboesa ou de baunilha converto depois em frescura pela garganta abaixo.» Pensava que isto era um tanto bem dito de mais, mas ela sentiu que eu achava que era bem dito e continuou, detendo-se por um instante quando a sua comparação era bem achada para se rir com o seu belo riso que para mim era tão cruel por ser tão voluptuoso: «Meu Deus, no Hotel Ritz receio que não encontre colunas Vendôme de gelado, de gelado de chocolate, ou com framboesa, e então serão precisos vários para que tudo tenha o ar de colunas votivas ou de pilones levantados numa alameda à glória da Frescura. Eles também fazem obeliscos de framboesa, que se erguerão de praça em praça no deserto ardente da minha sede e cujo granito rosado deixarei desfazer-se ao fundo da garganta, que melhor hão-de desalterar do que se fossem oásis (e aqui estalou o riso profundo, ou de satisfação por falar tão bem, ou de troça de si mesma por se exprimir em imagens tão constantes, ou ainda, infelizmente, pela volúpia física de sentir em si algo tão bom, tão fresco, que lhe causava o equivalente de um prazer erótico). Esses picos de gelado do Ritz parecem às vezes o monte Rosa, e mesmo, quando o gelado é de limão, não me importa que não possua uma forma monumental, que seja irregular, abrupto, como uma montanha de Elstir. Então é preciso que não seja branco de mais, mas um pouco amarelado, com aquele ar de neve suja e baça das montanhas de Elstir. Ainda que o gelado não seja grande, ainda que seja um meio gelado, se quiser, esses gelados de limão são, mesmo assim, montanhas reduzidas a uma escala pequenina, mas a imaginação restabelece as proporções, como no caso daquelas arvorezinhas japonesas anãs que apesar disso sentimos que são cedros, carvalhos, mancenilhas, de tal modo que, se pusesse algumas ao longo de um pequeno rego no meu quarto, teria uma imensa floresta a descer para um rio e onde as criancinhas se perderiam. Do mesmo modo, ao pé do meu meio gelado amarelado de limão vejo muito bem postilhões, viajantes, seges de posta, sobre os quais a minha língua se encarrega de fazer rolar glaciais avalanchas que os engolirão (a volúpia cruel com que ela disse isto despertou o meu ciúme); exactamente», acrescentou, «como me encarrego de destruir com os lábios, pilar por pilar, essas igrejas venezianas de um pórfiro que é morango, e de fazer cair sobre os fiéis o que tiver poupado. Sim, todos esses monumentos passarão do seu lugar de pedra para o meu peito, onde já palpita a sua frescura em fusão. Mas olhe que, mesmo sem gelados, nada é mais excitante e faz mais sede que os anúncios das fontes termais. Em Montjouvain, em casa da menina Vinteuil, não havia uma boa casa de gelados nas vizinhanças, mas fazíamos a nossa volta à França no jardim bebendo todos os dias uma água mineral gasosa diferente, como a água de Vichy, que, mal se serve, logo levanta das profundezas do copo uma nuvem branca que adormece e se dissipa se não a bebermos depressa.»

PROUST, Marcel. Em Busca do Tempo Perdido, volume V - A Prisioneira, tradução de Pedro Tamen, Lisboa, Relógio D'Água, 2004; pp. 121 - 124.

Uvas e Limão - Alexei Antonov





1 comentário:

  1. Que excerto mais apetitoso! E que belo quadro! Tenho uma predilecção por doces com sabor a limão: gelado de limão (huuum!)... pudim de limão... mousse de limão... sumo de limão... etc, etc... Bem, fiquei agora com água na boca...

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