quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

Íbis

(…) Há em Pessoa um lado inventor de «professor Pardal». Sonhou comercializar as suas descobertas: um novo tipo de máquina de escrever, um novo sistema de papel de carta com envelope incorporado, um «anuário sintético», um «código de cinco letras», etc. Inventou uma reforma da ortografia. Quis abrir um consultório de astrologia e de grafologia. Mas nenhuma forma de actividade o atraiu tanto como as relacionadas com a literatura. É nesse domínio que pretende que a sua vida se processe. Que é que lhe faltou para ter êxito? A resposta está no próprio nome que deu à sua editora e tipografia, Íbis. Vamos encontrar esse nome até ao fim, em circunstâncias definidas da sua vida. A íbis simboliza a parte infantil do seu ser – a infância conservada ou reencontrada. Pessoa ainda se sentia criança, e lamentava não ter podido ficar criança mais tempo. Ele gostava de crianças. Foi para os sobrinhos e para os primos pequenos que escreveu este curto poema:
«A Íbis, a ave do Egipto
Pousa sempre sobre um pé
O que é
Esquisito.
É uma ave sossegada,
Porque assim não anda nada.»
Para os divertir, fazia de íbis, mantendo-se de pé sobre uma perna, com a outra dobrada. E, quase quinze anos passados sobre o empreendimento falhado da casa Íbis, é a personalidade desta ave sagrada muito «sossegada» que ele assume quando escreve a Ofélia, naquele estilo voluntariamente pueril das Cartas de Amor, que tanto contrasta com a sua prosa habitual: «Meu Bebezinho querido: Então o meu Bebé não ficou ontem descontente com o Íbis? Então ontem achou o Íbis meigo e digno de jinhos?...» O facto de ter colocado a sua empresa industrial e comercial sob o signo da parte dele próprio que menos pronta está para fazer face a tal desafio é cem por cento Pessoa, com aquela espécie de vontade de falhar, inconsciente e contudo inteligente, que nunca mais o deixará.
BRÉCHON, Robert, Estranho Estrangeiro. Uma biografia de Fernando Pessoa, trad. de Maria Abreu e Pedro Tamen, Lisboa, Quetzal Editores, 1996, pp. 95-96.

3 comentários:

  1. Obrigada, Clio, por este texto tão belo!

    Há dias foi transmitido, na RTP 1, o documentário sobre Fernando Pessoa, apresentado por Clara Ferreira Alves, parte do concurso dos "Grandes Portugueses". Gostei muito de ver; Clara Ferreira Alves falou de muitas coisas sobre este poeta de muitas façanhas conseguidas e falhadas. Entre elas, também falou da tipografia Íbis. A maior parte das suas façanhas foram conseguidas após a sua morte, como publicar quase toda a sua obra, que não fora publicada enquanto era vivo. Só conseguiu editar a "Mensagem", em vida. Falhou na tipografia, na conclusão de muitos projectos seus, na carreira académica, nos amores com Ofélia. A sua vida foi um quase à Mário de Sá-Carneiro. E, ainda assim, imortalizou-se com um dos maiores portugueses de sempre.

    Embora goste imenso de Pessoa, o meu voto nos "Grandes Portugueses" já foi decidido há muito tempo e já foi para o Infante D. Henrique. Não desfazendo dos outros portugueses, reconheço a importância vital do Infante. Sem a sua iniciativa, coragem, inteligência e espírito pioneiro e empreendedor, teria Fernando Pessoa escrito a "Mensagem"? Teria Luís de Camões cantado os feitos dos navegadores portugueses? Teria Vasco da Gama encontrado o caminho marítimo para a Índia?

    Voltando a Pessoa, gostei de conhecer esse lado infantil da Íbis, ave sagrada do Egipto. As íbis estão numa fonte da Quinta da Regaleira, em Sintra, onde se diz que Fernando Pessoa terá tido os seus rituais iniciáticos na maçonaria.

    ResponderEliminar
  2. Correcção: onde se lê "imortalizou-se com um", deve ler-se "imortalizou-se como um".

    ResponderEliminar
  3. Obrigada pelo teu comentário, Hera! Gostei muito.

    Estou na escola... acabei as aulas por hoje... estou um pouco deprimida... vou ter saudades dos miúdos... até dos terríveis... A colega que estou a substituir e que está a restabelecer-se de uma operação virá no 3º período... e comecei a pensar que vou sentir saudades... isto é, já tenho saudades... Bolas! Por que é que me afeiçoo tanto...?

    ResponderEliminar