quarta-feira, 24 de janeiro de 2007

Os machos lacrimosos

Mas o choroso todaviou-se. E foi crescendo de choraminguado para carpideiro. Entre soluços, soltava os fios da fúnebre narrativa. Já nem se percebia palavra, tal maneira as falas vinham envoltas em babas. Na sala surgiu um lenço e rodou de mão em mão, colectando excessos. Tarde de mais: as chamas da tristeza já haviam devorado o coração de Kapa-Kapa.
Desistiram de o consolar. Amolecidos, os amigos foram-se rendendo a um descaimento no peito, o singelo peso da lama na alma. Fosse isso a tristeza. E chegou mesmo a escorrer, dissimulata, uma lágrima no rosto barbudo do dono do estabelecimento. No dia seguinte, quando se sentaram no bar, ainda foi disparado um gracejo. Sabem a última? Mas o homem logo se arrependeu: o que ele estava a dar era um ar de sua desgraça. A melancolia se instalara como toalha sobre a mesa. Silvestre Estalone ainda insistiu com nova graça. Mas ninguém riu. Estava-se mais interessado em escutar os novos capítulos da tristeza.
E pediram a Luizinho Kapa-Kapa: ele que divulgasse mais detalhes, rasgando véus, desocultando destinos. E o Luizinho desfez-se na vontade: o drama se desfolhou, ante o olhar lacrimoso dos presentes. Não tardou que todos chorassem babas e rebanhos.
E foi sucedendo uma e outra noite. Uma e outra rodada de tristeza. Os baristas de Matakuane foram deixando a piada e o riso. E passaram a partilhar lamentos, soluços e lágrimas. E até Silvestre Estalone, o mais macho e sorumbático da tribo, acabou confessando:
Nunca eu pude imaginar, malta. Mas como é bom chorar!
Chorar, mas chorar junto, acrescentaram os outros. E até um se lembrou de propor uma associação de choradores. Pudessem mesmo substituir as profissionais carpideiras dos velórios. Mas os restantes se opuseram, firmes. Afinal, ainda neles restava o fundo preconceito macho de que lágrima pública é coisa para mulherido.
E foi sucedendo tão devagar que nem parecia acontecer. Ocorria, porém, que os antigos anedoteiros passaram a mudar de trato com o mundo. Aos primeiros sinais do anoitecer lá um declarava ter que regressar a casa.
Para ajudar a minha gente – confessava, meio envergonhado.
E um outro declinava a insistência de mais uma bebida.
Não quero que a minha patroa se zangue – justificava.
Quem quer bebida, pede medida – proverbiavam todos.
E mesmo o Silvestre, que era quem sempre fechava o bar, apelava para que olhassem o relógio. Voltassem todos aos seus lares, convidava o ex-boémio.
Sim, vamos para nossas casas. Mas não sem derramarmos mais uma lágrima.
Sim, sai uma para o caminho.
in COUTO, Mia, «Os machos lacrimosos», O Fio das Missangas, Lisboa, Caminho, 2004, pp. 110-111.

Analua Zoé, Man Tears, 2006

1 comentário:

  1. Gostei muito.

    A típica situação de beber para afogar as lágrimas.

    Isto recorda-nos que, afinal, um homem também chora. E recorda-me um fado da Amália Rodrigues, chamado "Vou Dar de Beber à Dor", que descreve também uma dor que é aliviada com a bebida. Nesse fado, a dor é a melancolia insuportável e sádica de um passado saudoso que não voltará nunca mais, a lembrança da casa de uma tal Mariquinhas onde uns pândegos petiscavam sardinhas... - escrevo isto a rimar, tal como vem na canção.

    O sujeito desse lamento em fado conta-nos:

    "Pois se é casa de penhor
    O que foi viveiro de amor,
    É ideia que não cabe cá nas minhas!"

    E o fado acaba assim:

    "Pois dar de beber à dor é o melhor,
    Já dizia a Mariquinhas!"

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