terça-feira, 9 de janeiro de 2007

A infinita fiadeira

(A aranha ateia
diz ao aranho na teia:
o nosso amor
está por um fio!)
A aranha, aquela aranha, era tão única: não parava de fazer teias! Fazia-as de todos os tamanhos e formas. Havia, contudo, um senão: ela fazia-as, mas não lhes dava utilidade. O bicho repaginava o mundo. Contudo, sempre inacabava as suas obras. Ao fio e ao cabo, ela já amealhava uma porção de teias que só ganhavam senso no rebrilho das manhãs. E dia e noite: dos seus palpos primavam obras, com belezas de cacimbo gotejando, rendas e rendilhados. Tudo sem fim nem finalidade. Todo o bom aracnídeo sabe que a teia cumpre as fatais funções: lençol de núpcias, armadilha de caçador. Todos sabem, menos a nossa aranhinha, em suas distraiçoeiras funções.
Para a mãe-aranha aquilo não passava de mau senso. Para quê tanto labor se depois não se dava a indevida aplicação? Mas a jovem aranhiça não fazia ouvidos. E alfaiatava, alfinetava, cegava os nós. Tecia e retecia o fio, entrelaçava e reentrelaçava mais e mais teia. Sem nunca fazer morada em nenhuma. Recusava a utilitária vocação da sua espécie.
Não faço teias por instinto.
Então, faz porquê?
Faço por arte.
Benzia-se a mãe, rezava o pai. Mas nem com preces. A filha saiu pelo mundo em ofício de infinita teceloa. E em cantos e recantos deixava a sua marca, o engenho da sua seda. Os pais, após concertação, a mandaram chamar. A mãe:
Minha filha, quando é que assentas as patas na parede?
E o pai:
Já eu me vejo em palpos de mim...
Em choro múltiplo, a mãe limpou as lágrimas dos muitos olhos enquanto disse:
Estamos recebendo queixas do aranhal.
O que é que dizem, mãe?
Dizem que isso só pode ser doença apanhada de outras criaturas.
Até que se decidiram: a jovem aranha tinha que ser reconduzida aos seus mandos genéticos. Aquele devaneio seria causado por falta de namorado. A moça seria até virgem, não tendo nunca digerido um machito. E organizaram um amoroso encontro.
Vai ver que custa menos que engolir mosca – disse a mãe.
E aconteceu. Contudo, ao invés de devorar o singelo namorador, a aranha namorou, enamorada. Os dois deram-se os apêndices e dançaram ao som de uma brisa que fazia vibrar a teia. Ou seria a teia que fabricava a brisa?
A aranhiça levou o namorado a visitar a sua colecção de teias, ele que escolhesse uma, ficaria prova de seu amor.
A família desiludida consultou o Deus dos bichos, para reclamar da fabricação daquele espécime. Uma aranha assim, com mania de gente? Na sua alta teia, o Deus dos bichos quis saber o que poderia fazer. Pediram que ela transitasse para humana. E assim sucedeu: num golpe divino, a aranha foi convertida em pessoa. Quando ela, já transfigurada, se apresentou no mundo dos humanos logo lhe exigiram a imediata identificação. Quem era, o que fazia?
Faço arte.
Arte?
E os humanos se entreolharam, intrigados. Desconheciam o que fosse arte. Em que consistia? Até que um, mais-velho, se lembrou. Que houvera um tempo, em tempos de que já se perdera memória, em que alguns se ocupavam de tais improdutivos afazeres. Felizmente, isso tinha acabado, e os poucos que teimavam em criar esses pouco rentáveis produtos – chamados obras de arte – tinham sido geneticamente transmutados em bichos. Não se lembrava bem em que bichos. Aranhas, ao que parece.
Mia Couto, «A Infinita Fiadeira», in O Fio das Missangas,
Lisboa, Caminho, 2004.

2 comentários:

  1. Clio, mas que excerto tão maravilhoso! Um hino à glória da arte, uma recusa de nos cingirmos apenas ao simples utilitarismo. Porque a vida de um ser humano é muito mais do que a necessidade de comer, procriar, respirar e pagar as contas no fim do mês. A alma humana alimenta-se da beleza, da alegria, da vida, do entusiasmo,... - da arte! A alma transcende o útil, o imediato, o material, o corpóreo, o finito e ascende à arte, a essa beleza imaterial que virá de uma inspiração divina.

    Gostei muito.

    Beijinhos.

    ResponderEliminar
  2. E o poder da arte é o de nos dar diferentes visões de uma mesma produção. Qual é o nosso local neste mundo, nós classicistas, sentimos isso na pele. Numa sociedade que privilegia a tecnologia, o que é novo, vimos-nos sem lugar e obrigados a encontrar outro rumo, mas será que vai haver lugar quando chegarmos ao destino?
    Oscula

    ResponderEliminar