quarta-feira, 13 de dezembro de 2006

A mulher grávida

Se teve que sair, na rua toda a gente
Olhando para ela, esboça um sorrisinho...
Uma madama opina a outra em tom escarninho:
«-Sair prà rua assim, ai filha, acho indecente!».

Um peralvilho tolo - um bacharel-formado,
De profissão cretino - os dentes arreganha:
«-Olha pra aquela gaja... Ena! como vai prenha!...»
Pra outro néscio diz, julgando-se engraçado.

Por toda a parte o ventre informe é um motivo
De risos e chacota. Estúpida maldade!
Mas esse ventre enorme e duplamente vivo,
Ó súcia, reparai! é a Maternidade!

Sabeis vós por ventura o que isso é, malandro?
Sabeis o que é ser mãe, fedúcia viciosa?
Vós conheceis do amor os lúbricos meandros,
Mas não sabeis o que é ser mãe, mula asquerosa!...

Ser mãe - doce evangelho - é sentir palpitar
Dentro da sua carne, a carne doutro ente;
Fazer da sua alma, a alma desse ente,
Reconhecer que nem só Deus pode criar.

É cumprir a missão pela terra exigida,
É dar-lhe mais alguém que a aperfeiçoe e a amanhe.
É ter quem nos estime e quem nos acompanhe,
É morrer e deixar no mundo a sua vida.

Lá vai por isso a mãe, e sempre imperturbável
Nem ouve os imbecis. Caminha vagarosa,
No rosto uma expressão enternecida, afável:
Pesa-lhe a carga mas transporta-a jubilosa.

E se ouve os risos pensa: «É pra me acostumar
A padecer por ele...» Os risos, os gracejos,
As dor's e tudo mais, ele há-de-lhe pagar,
Ele há-de-lhe pagar e com milhões... de beijos...

Ventre de mãe, fruto maduro,
Ventre de mãe, ventre orgulhoso,
Tu és um cofre precioso,
Tu és o cofre do Futuro!

Lisboa, fevereiro de 1911.
SÁ-CARNEIRO, Mário de - Poemas completos. 2.ª ed. corrigida, Fernando Cabral Martins, ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001. 228 - 229 pp. ISBN 972-37-0193-6

2 comentários:

  1. Nada mais apropriado para esta época em que se celebra a natividade.
    A evolução que sofreu a visão de uma mulher grávida, primeiro adorada nas estatuetas primitivas, a sociedade civilizada tentou esconder a mulher grávida em casa e só no século XX a mulher assume orgulhosa o seu ventre distendido por uma carga preciosa.
    Mas o melhor de tudo é sempre o amor de mãe.
    Oscula

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