terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Pessoa contradito

Na noite terrível, substância natural de todas as noites,
Na noite de insônia, substância natural de todas as minhas noites,
Relembro, velando em modorra incômoda,
Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida.
Relembro, e uma angústia
Espalha-se por mim todo como um frio do corpo ou um medo.
O irreparável do meu passado — esse é que é o cadáver!
Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão.
Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte.
Todos os meus próprios momentos passados pode ser que existam algures,
Na ilusão do espaço e do tempo,
Na falsidade do decorrer.

Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei;
O que só agora vejo que deveria ter feito,
O que só agora claramente vejo que deveria ter sido —
Isso é que é morto para além de todos os Deuses,
Isso — e foi afinal o melhor de mim — é que nem os Deuses fazem viver ...

Se em certa altura
Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;
Se em certo momento
Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;
Se em certa conversa
Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro —
Se tudo isso tivesse sido assim,
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro
Seria insensivelmente levado a ser outro também.

Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido,
Não virei nem pensei em virar, e só agora o percebo;
Mas não disse não ou não disse sim, e só agora vejo o que não disse;
Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas,
Claras, inevitáveis, naturais,
A conversa fechada concludentemente,
A matéria toda resolvida...
Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói.

O que falhei deveras não tem sperança nenhuma
Em sistema metafísico nenhum.
Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei,
Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?
Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.
Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos,

Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca
Como uma verdade de que não partilho,
E lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é invisível p'ra mim.

Álvaro de Campos, in "Poemas"

Este é o poema que não quero proferir, porque quero sonhar tudo, e, apesar de não poder ir por todas as portas que se me apresentam, quero ter orgulho nas que escolhi e no que encontrei para lá delas. O que nos molda é o caminho que fazemos, não aquele que pensamos que poderíamos ter feito. Quando nos deixamos levar por esses pensamentos da hipótese não vivida, somos como o barro que gira na roda do oleiro, mole, pastoso, sem tomar uma forma concreta. Então tomemos a forma dos nossos caminhos, percorridos ao longo das nossas vidas.

Oscula

1 comentário:

  1. Olá!

    Esses "ses" são muito perturbantes...

    Acredito que pode haver situações em que, quer se diga "sim" ou "não", muito poucas coisas mudariam na nossa vida e continuaríamos a ser os mesmos ou - quem sabe? - mais infelizes e arrependidos.

    Acho que não se deve perder tempo com o que não foi ou com o que já não pode ser mudado. Invista-se o tempo no que pode ser mudado ou no que ainda pode vir a ser bom.

    E desculpa o reparo: será que o Álvaro de Campos escreveria "insônia" ou "incômoda"? Tenho as minhas dúvidas...

    Beijinhos e obrigada pelo poema.

    ResponderEliminar