quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Acerca da curiosidade

René Magritte, Espelho Falso (1928)

A curiosidade… O que dizer da curiosidade? À partida, nada há de mal na curiosidade. Ela sempre levou o ser humano a avançar, a progredir, a sair da ignorância, a voar cada vez mais alto. A curiosidade tem a sua face boa, virtuosa e, por vezes – ouso dizê-lo –, mesmo inocente.
Existem várias definições para o conceito de “curiosidade” e de “curioso”, que, obviamente, dependem de um factor essencial: o seu contexto. Ei-las: “curiosidade” – desejo de ver, de saber, de desvendar, de se instruir, etc.; indiscrição; bisbilhotice; objecto raro, original, estranho, que por isso desperta o interesse, a procura; trabalho leve, um pouco recreativo; aquilo que há de notável para ver; gosto das coisas raras ou originais; “curioso” – que revela curiosidade, que tem desejo de ver, saber, aprender, etc.; indiscreto; inspirado ou guiado pela curiosidade; interessante, digno de saber, de se saber, de admiração; singular, raro; zeloso, cuidadoso, aplicado; pessoa que cultiva uma arte sem fazer dela profissão, que faz algum trabalho que lhe não é habitual, que não é do seu ofício, em que não é especialista, por simples distracção; amador; indivíduo ocioso; basbaque, mirone; profissional sem diploma; pederasta activo; juiz, delegado, escrivão, etc..
Excluindo diversos contextos que os dicionários nos apresentam, pensemos nos lados mais básicos da curiosidade. O lado positivo é o que torna a curiosidade uma virtude admirável, pois é mão que desbrava novos caminhos, que descortina outras realidades. E o que nos beneficia nessa atitude só pode ser positivo. A curiosidade é virtude enquanto luz que nos guia.
Mas quando é que a curiosidade deixa de ser uma virtude?
Quando a luz que nos traz não serve para nos guiar a lado nenhum; quando o benefício é nulo; quando a dúvida dissipada não nos faz avançar em nada de importante, não nos torna mais sábios, não nos faz mais cultos nem mais sensatos. A curiosidade é desinteressante quando só nos revela algo que não nos interessa mesmo para nada. Pode interessar-nos muito saber toda a biografia do Mozart ou daquela escritora esquecida do século XIX que já quase ninguém sabe quem foi. Mas o que pode interessar saber do dia-a-dia do vizinho ou do colega do lado, com quem nem sequer temos uma relação de verdadeira amizade ou de genuína simpatia e a quem nem sentimos o desejo de ajudar? Nesse contexto, sim, a curiosidade é vício, é bisbilhotice.
Há pessoas que se interessam muito por coisas que, na verdade, não lhes interessam. Paradoxo? Pode ser, contudo é mesmo assim. Fulano interessa-se em saber que Sicrano, vizinho do andar de cima, vive um drama familiar regado com copos, bebedeiras, lágrimas, gritos e pancadaria. Esse interesse em saber melhora a vida de Fulano ou tem a ver com zelo, preocupação, cuidado, vontade de ajudar Sicrano e a sua família? Se a resposta for negativa, então é um caso de curiosidade sem benefício. Provavelmente Fulano nem irá reclamar do barulho causado pelo tumulto lá em cima que lhe tira a paz e o sossego; pelo contrário: esperá-lo-á com os ouvidos aguçados e a máxima concentração, para não perder uma palavra das acesas discussões e poder divulgar tudo aos quatro ventos. (Há sempre alguém com falta de bons programas de tempo livre e, em consequência, com falta de conversa interessante…) Reside, nesta curiosidade inútil e sem benefício, um certo voyeurismo, tendencialmente sádico, um prazer mórbido e malicioso na contemplação da vida alheia, sobretudo quando nela só vemos o espelho da desgraça e da miséria humana.
Esta curiosidade inútil, que é apenas um desejo de ver o mal, está intimamente ligada à inveja (palavra que, na sua etimologia, se relaciona com as origens do verbo “ver”); é, no fundo, um desejo de consolo, uma necessidade de confirmação de que o mal também existe nos outros e acontece aos outros e não existe somente em nós ou acontece só a nós. Quer-se sentir que não somos os únicos monstros ou os únicos aleijados ao espelho.
Por isso, quando se sente a sombra de problemas ou de uma situação desvantajosa, é comum aparecer depressa quem padece deste género de curiosidade e que é, notoriamente, aquele tipo de pessoa com quem não nos sentamos à mesa para um convívio normal, de conversa, em que todos os intervenientes são actores e espectadores. É um convívio – será verdadeiro convívio? –, um encontro em que o que ocorre na realidade é uma entrevista, em que alguém é entrevistado quase sem licença e o entrevistador só procura um espectáculo triste com o qual se possa comprazer uns momentos. Este tipo de curioso só quer observar, ser um espectador passivo que quer saber, mas que não quer saber para nada. Só quer saber. Quer ver o filme, porém não quer entrar nele, não quer ser actor. Não quer mexer em nada – isso teria como consequência a morte do filme que ele tanto aprecia. Fulano quer saber a vida de Sicrano, porém não quer saber de Sicrano.
Beltrana gosta de observar e comentar a horrorosa chaga que a coitadinha da coxa tem no joelho, mas quererá eliminá-la? Simplesmente gosta de levantar a saia da coxa e exibir o pobre joelho que estava tapado. E é tudo. Eliminar a chaga seria o fim do espectáculo.
E se a vida alheia espelhar apenas o bem? Isso já pouco importará… O bem nunca interessa à curiosidade maliciosa. Por vezes, se o bem existir, há que enlameá-lo bem enlameado, porque a visão de um lençol imaculado a brilhar sempre incomoda e cega a vista de quem se compraz com o mal.
Portanto, o lado mau da curiosidade, que não tem benefício nem proveito honroso, é um conceito que só tem esta acepção: indiscrição e bisbilhotice. E a este tipo de curioso apenas esta definição se aplica: indiscreto, indivíduo ocioso, basbaque, mirone. Tudo isto, claro, com uma secreta e inconfessável inveja imiscuída.

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