domingo, 18 de outubro de 2009

As Sereias


John William Waterhouse, Uma Sereia (1901) - Royal Academy of Arts, Londres, Inglaterra
óleo sobre tela, 67 cm x 98 cm
“(…)
Durante o resto do dia, até ao pôr do sol,
banqueteámo-nos com carne abundante e vinho doce.
Quando se pôs o sol e sobreveio a escuridão,
eles deitaram-se junto das amarras da nau.
Mas Circe, levando-me pela mão, sentou-me longe
dos queridos companheiros; deitando-se ao meu lado,
tudo quis saber; e eu tudo lhe contei, pela ordem certa.
Depois tais palavras me dirigiu a excelsa Circe:

‘Todas estas coisas foram cumpridas; mas ouve agora
aquilo que te direi, e um deus to recordará.
Às Sereias chegarás em primeiro lugar, que todos
os homens enfeitiçam, que delas se aproximam.
Quem delas se acercar, insciente, e a voz ouvir das Sereias,
ao lado desse homem nunca a mulher e os filhos
estarão para se regozijarem com o seu regresso;
mas as Sereias o enfeitiçam com seu límpido canto,
sentadas num prado, e à sua volta estão amontoadas
ossadas de homens decompostos e suas peles marcescentes.
Prossegue caminho, pondo nos ouvidos dos companheiros
cera doce, para que nenhum deles as oiça.
Mas se tu próprio quiseres ouvir o canto,
deixa que, na nau veloz, te amarrem as mãos e os pés
enquanto estás de pé contra o mastro; e que as cordas sejam
atadas ao mastro, para que te possas deleitar com a voz
das duas Sereias. E se a eles ordenares que te libertem,
então que te amarrem com mais cordas ainda.
(…)’

(…)

(…)
Entretanto chegou rapidamente a nau bem construída
à ilha das duas Sereias, pois soprava um vento favorável.
Mas de repente o vento parou: sobreveio uma acalmia
sem vento e um deus adormeceu as ondas.
Levantaram-se os companheiros e recolheram a vela,
guardando-a na côncava nau, e de seguida se sentaram nos bancos
e embranqueceram o mar com os remos de polido pinheiro.

Com o bronze afiado cortei pedaços de um grande círculo
de cera e amassei-os com as minhas mãos fortes.
Logo se aqueceu a cera por causa da grande pressão
e dos raios do soberano filho de Hiperíon, o Sol.
Besuntei depois com a cera os ouvidos dos companheiros.
Eles ataram-me na nau as mãos e os pés, estando eu de pé
contra o mastro; e ao próprio mastro ataram as cordas.
Sentaram-se e percutiram com os remos o mar cinzento.
Quando estávamos à distância de alguém, gritando, se poder
fazer ouvir, a rápida nau navegando depressa não passou
despercebida às Sereias, que entoaram o seu límpido canto:

‘Vem até nós, famoso Ulisses, glória maior dos Aqueus!
Pára a nau, para que nos possas ouvir! Pois nunca
por nós passou nenhum homem na sua escura nau
que não ouvisse primeiro o doce canto das nossas bocas;
depois de se deleitar, prossegue caminho, já mais sabedor.
Pois nós sabemos todas as coisas que na ampla Tróia
Argivos e Troianos sofreram pela vontade dos deuses;
e sabemos todos as coisas que acontecerão na terra fértil.’

Assim disseram, projectando as suas belas vozes;
e desejou o meu coração ouvi-las: aos companheiros
ordenei que me soltassem, indicando com o sobrolho;
mas eles caíram sobre os remos com mais afinco.
De imediato Perimedes e Euríloco se levantaram
para me atar com mais cordas, ainda mais apertadas.
Depois que passámos a ilha, e já não ouvíamos
a voz, nem o canto, das Sereias, os fiéis companheiros
tiraram a cera com que os ouvidos lhes besuntara
e a mim libertaram-me das amarras.

(…)”

(Canto XII, vv. 29 – 54, 166 – 200)


HOMERO. Odisseia, tradução de Frederico Lourenço, Lisboa, Livros Cotovia, 2003; pp. 200, 203 – 204.

2 comentários:

  1. Ai! Homero, Homero... Quantos ainda te desconhecem... e à tua obra.

    Beijinhos, amigos classicistas!

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  2. Waterhouse é fantástico... todas as suas obras sobre o tema da Odisseia transportam-nos para um ambiente de assombro, onde vivemos a obra a Homero.
    A surpresa foi óptima. Obrigado pela partilha.

    Abraço

    JC

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