terça-feira, 21 de julho de 2009

O tempo reencontrado



Enquanto certas mulheres, pintando-se, confessavam a sua velhice, esta, pelo contrário, revelava-se pela ausência de pintura em certos homens, em cujos rostos nunca expressamente a notara, e que, no entanto, me pareciam bem mudados desde que, já sem esperança de agradar, tinham deixado de usá-la. Entre estes estava Legrandin. A supressão do tom rosado, que eu nunca suspeitara que fosse artificial, nos lábios e nas faces dava-lhe à cara a aparência acinzentada e também a precisão mais escultural da pedra. Não só perdera a coragem de se pintar, mas a de sorrir, de exibir o brilho do olhar, de fazer engenhosos discursos. As pessoas admiravam-se de o ver tão pálido, abatido, sem pronunciar mais que umas raras palavras que possuíam a insignificância das palavras ditas pelos mortos quando são invocados. As pessoas perguntavam que causa o impediria de ser vivo, eloquente, encantador, do mesmo modo que não sabem que pensar diante do "duplo" insignificante de um homem que foi brilhante em vida e a quem um espírita faz perguntas que se prestariam até a respostas magníficas. E pensava-se que essa causa que havia substituído o Legrandin colorido e rápido por um pálido e triste fantasma de Legrandin era a velhice.
Em vários deles acabava por reconhecer, não apenas as suas próprias pessoas, mas eles tais quais eram outrora, como, por exemplo, Ski, que não estava mais modificado que uma flor ou um fruto que secou. Ele era uma experiência informe que confirmava as minhas teorias sobre a arte. Outros de modo algum eram amadores de arte, porque eram mundanos. Mas também a eles a velhice não tinha amadurecido, e mesmo quando a cara era enquadrada por um primeiro círculo de rugas e por um arco de cabelos brancos, continuava a ser o mesmo rosto embonecado com a mesma jovialidade dos dezoito anos. Não eram velhos, mas jovens de dezoito anos extremamente emurchecidos. Pouco bastaria para apagar aqueles estigmas da vida, e a morte teria tanto trabalho em devolver-lhes a juventude ao rosto como o necessário para limpar um retrato que só não brilha tanto como dantes por estar um pouco sujo. E, assim, pensava na ilusão de que somos vítimas quando, ao ouvirmos falar de um célebre velho, confiamos de antemão na sua bondade, na sua justiça, na benignidade da sua alma; porque sentia que estes tinham sido quarenta anos antes uns rapazes terríveis cuja vaidade, duplicidade, arrogância e artimanhas não havia qualquer razão para supor que não tivessem conservado.
E, contudo, em completo contraste com estes, tive a surpresa de conversar com homens e mulheres, dantes insuportáveis, e que a pouco e pouco haviam perdido todos os seus defeitos, porque a vida, decepcionando-os ou satisfazendo-os nos seus desejos, lhes havia retirado parte da sua presunção ou do seu azedume. Um casamento rico que já não lhes exige luta ou ostentação, ou até a influência da mulher, o conhecimento lentamente adquirido de valores que não aqueles em que uma juventude frívola exclusivamente acredita, havia-lhes permitido distender o carácter e mostrar as suas qualidades. Esses, à medida que envelheciam, pareciam adquirir uma personalidade diferente, como aquelas árvores cuja essência o Outono parece alterar ao variar-lhes as cores. Para eles, a essência da velhice manifestava-se deveras, mas como coisa moral. Em outros era sobretudo física, e tão nova que a pessoa (a senhora de Arpajon, por exemplo) me parecia ao mesmo tempo desconhecida e conhecida. Desconhecida porque me era impossível adivinhar que fosse ela e, sem querer, ao corresponder à sua saudação, não consegui deixar de dar a entender o esforço interior que me fazia hesitar entre três ou quatro pessoas (entre as quais não se contava a senhora de Arpajon) para saber a quem estava correspondendo com um calor que aliás a deve ter espantado, porque, na dúvida, com receio de ser excessivamente frio se se tratasse de uma amiga íntima, compensara a incerteza do olhar com o calor do aperto de mão e do sorriso. Mas, por outro lado, o seu aspecto novo não me era desconhecido. Era aquele que vira muitas vezes ao longo da vida em mulheres idosas e fortes, mas sem suspeitar então de que, muitos anos antes, tivessem podido parecer--se com a senhora de Arpajon. Este aspecto era tão diferente daquele que eu conhecera na marquesa que se diria que ela era uma criatura condenada, como uma personagem de conto de fadas, a aparecer primeiro como menina e depois como espessa matrona, e que por certo regressaria em breve como velha vacilante e curvada. Parecia, como se fosse uma pesada nadadora que só vê a margem a grande distância, afastar com dificuldade as ondas do tempo que a submergiam. Porém, a pouco e pouco, de tanto observar a sua cara hesitante, incerta como uma memória infiel que já não é capaz de reter as formas de outrora, consegui reencontrar alguma coisa dela entregando-me ao simples jogo de eliminar os quadrados, ou os hexágonos, que a idade lhe acrescentara às faces. De resto, o que esta introduzia nas faces das mulheres nem sempre eram apenas figuras geométricas. Nas faces da duquesa de Guermantes, apesar de terem permanecido tão parecidas com o que eram, e embora fossem agora compósitas como um nogado, distingui um vestígio de verdete, um pedacinho rosado de concha moída, uma espessura difícil de definir, mais pequena que uma bola de visco e menos transparente que uma conta de vidro.
Alguns homens coxeavam: sentia-se bem que não o faziam em consequência de um acidente de carro, mas devido a um primeiro ataque, e porque estavam já, como se costuma dizer, com os pés para a cova. Na sua cova semiaberta, algumas mulheres, meio paralisadas, pareciam incapazes de soltar completamente os vestidos que tinham ficado presos na laje e não conseguiam endireitar-se, flectidas que estavam, de cabeça baixa, numa curva que era como a que actualmente ocupavam entre a vida e a morte, antes da última queda. Nada podia lutar contra o movimento daquela parábola que as arrastava e, quando queriam erguer-se, tremiam, e os dedos não conseguiam segurar nada.
Em alguns o cabelo nem sequer tinha embranquecido. Assim, reconheci o velho criado de quarto do príncipe de Guermantes quando ele veio dizer qualquer coisa ao patrão. Os pêlos ásperos que lhe eriçavam as faces e o crânio haviam permanecido de um ruivo a puxar para o cor-de-rosa, e não podíamos conceber que os pintasse, como fazia a duquesa de Guermantes. Mas nem por isso parecia menos velho. Sentíamos apenas que existem certas espécies nos homens, tal como no reino vegetal existem os musgos, os líquenes e tantos outros, que não se alteram com a aproximação do Inverno.
(...)
Ao nosso lado passava também um ministro que o fora antes da época boulangista, e que o era de novo, dirigindo às senhoras um sorriso tremelicante e longínquo, mas como que preso nos mil laços do passado, como um pequeno fantasma passeado por uma mão invisível, diminuído no tamanho, mudado na sua substância e com o aspecto de ser uma redução de si mesmo em pedra-pomes. Aquele antigo presidente do Conselho, tão bem recebido no faubourg Saint-Germain, fora em tempos objecto de investigações criminais e execrado pela sociedade e pelo povo. Mas, graças à renovação dos indivíduos que compõem uma e outro, e, nos indivíduos que subsistiam, à das paixões e até das memórias, já ninguém sabia disso - e era reverenciado. Assim, não existe humilhação, por maior que seja, que não devamos ultrapassar com facilidade, sabendo que ao fim de alguns anos as nossas faltas amortalhadas já não passarão de uma invisível poeira sobre a qual há-de sorrir a ridente e florida paz da natureza. Graças ao jogo de equilíbrio do tempo, o indivíduo momentaneamente desacreditado virá a encontrar-se situado entre duas camadas sociais novas que por ele só sentirão deferência e admiração, e por sobre as quais facilmente poderá pavonear-se. Porém, é ao tempo que está confiado esse trabalho; e no momento dos seus aborrecimentos nada poderá consolá-lo do facto de a jovem empregada da leitaria da frente ter ouvido uma multidão de punho erguido chamar-lhe "vigarista" enquanto ele entrava na ramona, aquela mesma rapariga da leitaria que não vê as coisas no plano do tempo, que ignora que os homens incensados pelo jornal da manhã foram em tempos desconsiderados e que o homem que naquele momento está tão perto da prisão e que talvez, pensando naquela jovem leiteira, não pronunciará as palavras humildes que lhe granjeariam simpatias, será um dia celebrado pela imprensa e festejado pelas duquesas. E, do mesmo modo, o tempo afasta as querelas de família. Em casa da princesa de Guermantes estava um casal em que marido e mulher tinham como tios, hoje mortos, dois homens que não se haviam limitado a esbofetear-se: um deles, até, para mais humilhar o outro, enviara-lhe como testemunhas o porteiro e o mordomo, por achar que pessoas da sociedade seriam de mais para ele. Mas estas histórias dormiam nos jornais de há trinta anos e já ninguém as conhecia. E, assim, o salão da princesa de Guermantes estava iluminado, descuidado e florido, como um tranquilo cemitério. O tempo, ali, não só desfizera antigas criaturas, mas também tornara possíveis e criara novas associações.
PROUST, Marcel. Em Busca do Tempo Perdido, volume VII - O Tempo Reencontrado, tradução de Pedro Tamen, Lisboa, Relógio D'Água, 2005; pp. 258 - 261, 272 - 273.

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