quinta-feira, 23 de abril de 2009

Jantar



Monica Bellucci

Era um banal jantar de despedida de solteira. Mas talvez não tão banal quanto parecesse à primeira vista. Entre as convidadas encontravam-se alguns elementos que, normalmente, não costumam estar incluídos nestes encontros de convívio feminino: a mãe da noiva, a sua futura sogra, outras senhoras da mesma faixa etária - a saber: tias da noiva e do noivo, amigas da mãe da noiva e amigas da futura sogra - e até algumas criancinhas (por acaso, todas do sexo masculino). O que tradicionalmente é um encontro das amigas da noiva (sem mães dos noivos e outras gerações incluídas, por mais amigas e boas pessoas que sejam) estava transformado numa reunião familiar, em que parecia - parecia?! era mesmo isso que tinha acontecido! - que os homens todos desertaram para uma grande farra e ficaram as mulheres de todas as idades entregues umas às outras e ainda a terem de olhar pelas crianças, como se essa responsabilidade apenas a elas coubesse.

Mas o ambiente estava muito bom e descontraído. A Marta, que viera sozinha ao último jantar de amigas em que a sua amiga Estela era solteira, sentia-se muito feliz por rever a Estela e todas as outras amigas do mundo da Estela. As senhoras mais velhas sentiam-se muito bem entre tantas raparigas mais novas, contagiadas pela sua juventude e pelos seus risos, e até as mães das criancinhas que berravam e pediam colo a todo o momento conseguiam ambientar-se e acompanhar as conversas, enquanto se encaminhavam todas para o restaurante, guiadas pela Estela e pela sua futura cunhada, a Verónica. Entre alguns minutos de caminhada, todas trocavam as últimas novidades e os "há tanto tempo que não te via! é preciso alguém casar, nascer ou morrer!"

Entre várias caras familiares e novos rostos, a Marta instintivamente colara-se às amigas de há já vários anos, companheiras de tantos bons momentos partilhados com a Estela - a Luísa e a Ângela. No restaurante, a sala reservada estava muito cheia, com várias mesas redondas, muito próximas umas das outras, de tal forma que aparentavam estar de algum modo interligadas. A Luísa murmurava, entre a confusão, que "vai ser difícil sentarmo-nos muito longe umas das outras". As mesas eram grandes, cerca de umas sete mesas, todas com grandes toalhas brancas e muito bem decoradas com lírios e orquídeas de várias cores, que as senhoras mais velhas ficaram com muita vontade de ter nos seus jardins.

A Marta, a Luísa e a Ângela sentaram-se ao lado da Inês, que as chamara de imediato, assim que as viu, talvez com receio de ficar isolada no meio de caras totalmente desconhecidas. Ao lado da Marta e das amigas mais próximas, sentaram-se três senhoras mais velhas e duas raparigas que conheciam mal, apenas as tinham visto casualmente em cada vez mais raros encontros de amigos a que a Estela e o João, o namorado (agora noivo), costumavam convidá-las também.

A Estela ficara numa das mesas centrais, ao lado da mãe e de umas tias. Várias das amigas olhavam-na, riam-se e teciam comentários: "aproveita, que a tua liberdade está-se a acabar..." A Estela sorria muito, notava-se a sua alegria e também o seu nervosismo, e devolvia a todas as amigas os mesmos olhares de carinho e cumplicidade, como que agradecendo a presença de todas. A Verónica verificava se já estavam na sala todas as convidadas e ia tirando fotografias a todas as que já estavam sentadas às mesas.

Entretanto, acalmada a chusma de mulheres reunidas, os empregados traziam as entradas e as ementas e as comensais que não se conheciam apresentavam-se umas às outras. Ao lado da Marta, da Ângela, da Luísa e da Inês estavam as duas raparigas, que voltaram a apresentar-se. Bárbara e Adriana. Eram amigas da noiva, sim. Porém não pertenciam à fase mais antiga do grupo, em que a Estela, a Marta e as amigas estavam longe de imaginar que deixariam de ter 19 anos e de andar na licenciatura, longe de imaginar que alguém do seu grupo se casaria e que se estavam todos a tornar parecidos com os seus pais, quando queimavam as costas e os seus dias de Verão na praia. A Bárbara e a Adriana conheceram a Estela por intermédio do João. Eram namoradas de amigos do João. As outras senhoras também se apresentaram: uma tia do João e duas amigas da mãe do João, a futura sogra.

A escolha dos pratos que partilhariam todas foi demorada e discutida. A Luísa queria um prato de massa italiana, mas acabou por se deixar convencer e mudar de ideias, quando viu que todas queriam grelhados diferentes. Vieram saladas, batatas cozidas, travessas de gambas grelhadas, de polvo e chocos grelhados, de bacalhau assado e de bifes grelhados de vaca e porco. Na mesa da Marta e das amigas ninguém terá ficado sem provar cada uma das variedades de grelhados. A Marta, conhecida como a "desmancha-prazeres" por pedir sempre água mineral e abusar dela, lá teve de provar um copo de rosé, por solidariedade com a Ângela, que estava sempre sozinha nessa sua idiossincrasia de querer rosé em todas as ocasiões especiais.

A meio do jantar, quase de certeza que nenhuma das mais novas terá ficado indiferente às mães que tentavam comer e conviver, enquanto retalhavam os bifes às criancinhas, mandavam-nas comer tudo e que se calassem e que ficassem quietas e outras punham os babetes aos filhos mais novos e davam-lhes os biberões de água e de leite e depois deitavam-nos nos carrinhos, na esperança de que ficassem sossegados. Algumas raparigas, que deviam ser familiares próximas, depois da refeição entretinham os pequenos mais irrequietos, pegando-lhes ao colo e brincando com eles, dando algum descanso às mães. Outras, as desconhecidas, como a Marta, a Ângela e a Inês, olhavam à distância e, ao mesmo tempo que admiravam a beleza daqueles meninos, sentiam dó da sobrecarga de responsabilidades atribuída àquelas mães.

Uma das amigas da futura sogra da Estela, sentada mesmo ao lado da Marta e quase em frente à Inês e à Bárbara, aproveitara a ocasião de se estar como que a celebrar a proximidade de um casamento para declamar a sua autobiografia - toda ela macarismos e gloriosas venturas - à audiência de jovens amigas solteiras da Estela. Depois de alguém comentar os felizes sete anos de namoro da Estela e do João, começara ela a narrativa mais ou menos assim: "Ah! Eu também namorei sete anos com o meu marido! Foi o meu primeiro namorado! Sete anos de namoro e vinte e oito anos de casamento. Uma vida!" E enlaçava as duas mãos, encantada, pousando-as debaixo da bochecha esquerda. Claro que estas frases foram só o começo da venturosa odisseia do namoro e do casamento que ainda durava. Ouviram-se as qualidades épicas do marido, que era "um bom partido", trabalhador, bonito, inteligente - enfim, a causa da inveja de todas as mulheres à volta, que o queriam para elas; e o relatório da lua-de-mel e das lindas viagens que faziam todos os anos. Desse casamento não havia filhos - percebeu-se. Se os houvesse, a gloriosa senhora também exibiria a invejável aretê de cada um. Que poderiam a Marta e as amigas dizer? Apenas coisas tão simples como "que bom, minha senhora, teve muita sorte!" E ela sorria e rejubilava ao som do seu próprio refrão: "sete anos de namoro, vinte e oito anos de casamento".

Este refrão deu origem a que uma das comensais, a jovem Bárbara, pegasse na conversa e dissesse: "Ah, eu sou dessas!... Namoro há oito anos, também foi e é o meu primeiro namorado e ainda estamos juntos." A Adriana, que era, das convidadas presentes naquela mesa, a que conhecia bem a Bárbara e convivia bastante com ela, respondeu à pergunta da senhora gloriosa: "A Bárbara não tem casa dela comprada, mas o namorado já tem a casa dele." Perante essa resposta, sorriram todas e a Bárbara acrescentara que provavelmente o casamento dela seria no ano seguinte.

Por mais duas ou três vezes em toda a conversa, a Bárbara ia dizendo "eu sou dessas", que foram as palavras que sobressaíram e ecoaram com mais força. Essas palavras tornaram-se o tópico subliminar da conversa e, a dado momento, a Marta, a Inês, a Ângela e a Luísa entreolharam-se pensativamente, sem dizerem mais nada, como se pensassem se elas próprias não pertenceriam naquele momento ao grupo das outras, as outras que não são "dessas", mas "daquelas". As outras que não tiveram a sorte de serem felizes com o primeiro namorado e de namorarem muitos anos com ele, que carregam um qualquer estigma social subentendido de terem algum defeito mesmo por causa disso. As outras que tentaram a sorte com vários e que com vários tiveram azar. As outras que poderão ser vistas como mulheres que nunca casarão e que nunca serão levadas a sério. As outras. Como se alguém pudesse controlar totalmente o seu destino. Como se "ser dessas" fosse um dom controlado na perfeição pela Bárbara.

Os empregados retiraram as travessas e os pratos vazios. Veio um bolo especial para a mesa da Estela, que foi sendo distribuído pelas convidadas. Enquanto a Marta comia primeiro os morangos que vinham no bolo, a Inês, que estava à sua frente, compreendeu o seu sorriso melancólico e sorriu-lhe, divertida e também deliciada, enquanto olhava de esguelha a pobre Bárbara. Quando é que as mulheres deixariam de ser cruéis para si mesmas e de colocar maus rótulos umas às outras? Quando é que deixariam de se preocupar só em agradar aos homens e começariam a pensar mais nelas e a ter mais dignidade e auto-estima? Quando? Provavelmente nunca.

Quando se encheram as taças com champanhe, intimamente a Marta e as amigas sorriram, brindaram à Estela e à sua felicidade, contudo também brindaram às tristezas e aos desgostos de amor que foram tendo, que lhes permitiram crescer e aprender alguma coisa com eles. Pobre Bárbara, cuja felicidade absoluta nunca lhe permitiu ver com lucidez certos factos da vida, cujo namoro sem sobressaltos nunca lhe permitiu observar que ninguém pode ser categorizado em função da sua felicidade ou infelicidade, que a vida acontece e que controlamos muito poucas coisas que ocorrem ao nosso redor.

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