domingo, 1 de fevereiro de 2009

O inovador

Há momentos na vida em que enveredamos por um caminho novo, inexplorado. Acontece-nos quando, ao terminarmos os estudos, procuramos um trabalho, quando decidimos abandonar a nossa terra para partirmos para uma grande cidade. Quando trocamos um emprego seguro por uma actividade empresarial, quando nos enamoramos e vamos viver com outra pessoa. Mas também quando decidimos seguir a nossa vocação política, religiosa ou artística.
Em todos estes casos somos forçados a abandonar o nosso mundo habitual, tranquilo, previsível, e vemo-nos arremessados num território cheio de insídias onde navegamos à vista e não sabemos se correrá bem ou mal. E quanto mais importante for a aposta, mais arriscada e incerta se torna a proeza. Devemos então comprometer todas as nossas energias intelectuais e emotivas.
E nada de distracção! Nada de baixar os braços! Às vezes até nos parece que as dificuldades aumentam à medida que nos aproximamos da meta. E o mais impressionante é que, enquanto metade das dificuldades provém do mundo exterior, a outra metade provém do sentimento de abandono, da incompreensão daqueles que deveriam estar a nosso favor, do nosso lado.
Nestes momentos difíceis, cruciais, nesta luta num terreno desconhecido, realmente, quase sempre estamos sozinhos. Também as pessoas mais próximas, os pais, os filhos, o marido ou a mulher, os amigos mais íntimos, os familiares, ficam desconcertados, afastam-se, ficam a olhar. Com frequência estão desconfiados, receosos, criticam-nos ou não nos defendem dos ataques que sofremos.
Porquê? Porque saímos do grupo, afastámo-nos deles. O grupo, o conjunto dos familiares, dos amigos, é um todo orgânico em que cada um tem uma identidade definida. E as diferentes identidades combinam entre si para formar um mosaico. Agora nós mudamos de papel, separamo-nos, já não jogamos o nosso jogo habitual, desmanchamos o mosaico. Perturbamos a imagem que têm de si mesmos, incomodamos a sua serenidade.
O indivíduo singular, separado dos outros, está disposto a compreender. Mas quando volta a falar com eles muda de ideias, deixa-se contagiar pela reacção do grupo. Deixamo-lo entusiasta e reencontramo-lo frio. Basta pouco para provocar desconcerto. Tentem mudar de penteado, deixar crescer a barba ou pintar o cabelo de vermelho. Tentem dizer-lhes que decidiram ser pintores ou estudar canto.
Muito mais grave é a reacção quando quiserem ser diferentes, quando quiserem escolher um caminho novo. Então, mesmo que ninguém o diga explicitamente, o grupo recusa-vos. De repente ficam sozinhos. Vejam nos seus olhos a crítica, a desconfiança. Alguns aconselhar-vos-ão de forma dura para verem se alguém vos plagiou ou se estão bem da cabeça. Do homem dizem que perdeu a cabeça, duma mulher, que é uma galdéria.
Por isso têm de se desenvencilhar sozinhos e as pessoas que deveriam estar mais próximas de vós não se apercebem ostensivamente, do vosso cansaço, da vossa angústia. Não vos dão uma mão, pelo contrário, normalmente deitam para cima de vós os seus problemas e irritam-se porque vocês não se preocupam com eles. É mais fácil que a ajuda venha de algum desconhecido, de um salvador externo.
Se a tentativa de inovação acabar mal, os críticos exultam de alegria porque tinham razão. Porém, normalmente, o inovador vence. Porque se bate ferozmente, porque investe de cabeça. E então, depois da vitória, o grupo regressa todo contente para se apropriar dele e do seu sucesso. Chegam também os familiares mais afastados, os conterrâneos e todos dizem ter visto logo. "Lembras-te? Lembras-te?", murmuram-lhe, reinventando o passado. E o inovador, que sofreu tanto com a solidão, agora consola-se com esta vergonha colectiva.
ALBERONI, Francesco. O Optimismo, tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra, Lisboa, Círculo de Leitores, 2001; pp. 90 - 92.

4 comentários:

  1. Já há muito tempo que não via o lucerna assim tão dinâmico, quer a nível da frequência de publicação, quer a nível da diversidade de socii que o fazem.

    Hera, bem-vinda também tu de novo!

    Beijinhos para todos e uma boa semana.

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  2. Este texto é tão verdadeiro, vejo este processo em curso na vida de uma pessoa que muito estimo. Ainda não se alcançou a meta, mas espero que, como é dito neste texto, o inovador triunfe. Eu serei aquela que sempre apoiou e que constatará a vitória com um sorriso, sem necessidade de quaisquer palavras.
    É tão bom quando vemos um texto tão bem escrito espelhar a realidade.
    Oscula

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  3. Olá a todos!

    Que bom que mais alguém apreciou estas palavras... Por eu tê-las apreciado especialmente, coloquei aqui este texto. Acho que será bastante provável que vários de nós se identifiquem com alguma(s) das situações neles expostas. (Touché! Revejo-me um bocadinho neste texto, confesso.)

    Inovem e lutem, sempre! Mesmo que não corra bem à primeira.

    E, sim, é bom reunirmo-nos por aqui a manter vivo este blogue. Continuemos assim, na medida do possível.

    Beijinhos e uma boa semana para todos!

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  4. Antes de terminar de ler o texto e de ver identificada a pessoa que o postou, pensei "Isto parece coisas da minha A.". E eis que chego ao fim e leio Hera!!!!!!!!!!!!!...
    Até pensei que o tivesses escrito, Hera! O texto tem alguma da tua energia!...

    Beijinhos,

    Ad...

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