terça-feira, 5 de junho de 2007

Venus

(A Pires Avellanoso)
I


Á flor da vaga, o seu cabello verde,
Que o torvelinho enreda e desenreda...
O cheiro a carne que nos embebeda!
Em que desvios a razão se perde!
Putrido o ventre, azul e aglutinoso,
Que a onda, crassa, n'um balanço alaga,
E reflue (um olfacto que se embriaga)
Como em um sorvo, múrmura de gozo.

O seu esboço, na marinha turva...
De pé, fluctua, levemente curva,
Ficam-lhe os pés atraz, como voando...

E as ondas luctam como feras mugem,
A lia em que a desfazem disputando,
E arrastado-a na areia, co'a salsugem.



II


Singra o navio. Sob a agua clara
Vê-se o fundo do mar, de areia fina...
Impeccavel figura peregrina,
A distancia sem fim que nos separa!

Seixinhos da mais alva porcelana,
Conchinhas tenuemente côr de rosa,
Na fria transparencia luminosa
Repousam, fundos, sob a agua plana.

E a vista sonda, reconstrue, compara.
Tantos naufragios, perdições, destroços!
Ó fulgida visão, linda mentira!

Roseas unhinhas que a maré partira...
Dentinhos que o vaivem desengastara...
Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos...



PESSANHA, Camilo. Clepsydra, edição crítica de Paulo Franchetti, Lisboa, Relógio D'Água, 1995; pp. 110 - 111.



Ofélia (1894)
John William Waterhouse


1 comentário:

  1. Horrivelmente belo...

    A decomposição... e a água clara do mar, que tudo purifica...

    ResponderEliminar