sexta-feira, 20 de abril de 2007

Encontros imprevistos

Na rotina do quotidiano, entre as múltiplas coisas que fazemos sem nos apercebermos e que não contabilizamos, há diversas contrariedades que - pelos menos a mim - me aborrecem, me irritam e me criam sentimentos de incapacidade, de alguma culpa e que vão fragilizando em qualquer coisa o ego e a auto-estima. A saber: um atraso, uma distracção, uma dificuldade ou engano que consomem o tempo e a paciência que nem sempre é aquela que se desejaria ter.
Mas, por vezes, todos estes irritantes contratempos como que tecem, na arquitectura do acaso, imprevistos bastante agradáveis que quebram a nossa depressiva rotina e nos levam a perceber que não estamos isolados na solidão das nossas tarefas e que o tempo muitas vezes não apaga, e, sim, acende!, as lembranças que deixamos uns aos outros nos nossos percursos.
Ontem precisei de encontrar a 1.ª edição de um livro, datada de 1907, que - bolas! - não havia na biblioteca habitual e familiar onde costumo ir e mato estas minhas sedes bizantinas de ver, pegar, manusear exemplares com várias décadas. Desta vez era mesmo preciso e lá tive eu de ir à biblioteca da Universidade Católica, de propósito, procurar, sempre com a crença de não ver frustrada a minha expectativa de encontrar aquele livro com aquela cota, tal como estava nos registos da Porbase. Fui à biblioteca com algum atraso. Como conheço mal a biblioteca da Universidade Católica, fiquei vários e vários minutos à espera que um funcionário aparecesse e me ajudasse. Apareceram duas funcionárias. Falei com uma delas a pedir ajuda. Mostrei a cota. "Ah, menina, suba as escadas que isso é ali à direita e tal..." Lá fui eu. Procurei, procurei, procurei, percorri estantes. Muitas cotas parecidas e nada. Mas não podia desistir assim. Estava com a necessidade de encontrar aquilo ali. Voltei a falar com a funcionária. "Ah, pois, isso ou não existe ou está requisitado... Vamos lá ver... Diga o título e o autor." Disse tudo e expliquei que tirei a cota tal como estava na Porbase. A funcionária pesquisou e disse: "A cota é outra. É esta. Anote. Veja na Biblioteca Campos Pereira, subindo as mesmas escadas e vire logo à esquerda." Lá fui eu. Que maravilha! Estava lá o que eu queria e mais umas quantas coisas para espreitar e satisfazer a curiosidade. Fui para uma mesa muito carregada e satisfeita. E... decepção! Aquela não era a 1.ª edição, de 1907, mas sim uma 3.ª edição, de 1926. Que chatice! Diabos! Será que teriam mesmo a 1.ª e onde? Mesmo assim, lá fui vendo o que tirei da estante, ocupando as horas, e nem fui almoçar, tão entretida que estava.
Fui arrumar aqueles livros, mas fiquei com aquela curiosidade a moer-me e voltei a percorrer outras estantes à procura. Pouca importava a fome e a hora de almoçar. Não queria ir embora com o meu objectivo gorado. Voltei à carga com a funcionária. "Desculpe incomodar..." "Ainda não encontrou o livro?" "Encontrei, mas não era bem aquele que eu queria... Eu precisava de ver a 1.ª edição." "Ah, sim! Eu ia dizer-lhe: tenho aqui uma cota da 1.ª edição, de 1907. É muito parecida com essa que a menina apontou, só não tem esse 0 no fim." Fiquei satisfeita, contudo percebi que, se eu não tivesse sido teimosa, a funcionária nunca teria ido atrás de mim pelas escadas para me avisar. E encontrei o que queria, finalmente! Perdi imenso tempo, por causa de uma indicação errada, por ter de esperar vários longos minutos que as funcionárias voltassem aos seus lugares de atendimento, de cada vez que precisei de ajuda, já não eram horas de almoçar, estava um pouco cansada e subnutrida, mas encontrei o que queria e mais umas coisas. Finalmente, podia sair da biblioteca, com o objectivo cumprido!
Saí. Ao descer as escadas, alguém apareceu de um corredor sombrio, viu-me e, antes de eu ver a pessoa, só senti a aproximação de um vulto e de uma voz que interpelou: "Então o que andas a fazer?" Era o nosso amigo Pedro! Estava diferente! Com uma cabeleira de caracóis mais exuberante, um bocado mais magro. Foi uma alegria!
Contei-lhe. "Vim aqui por causa de uma 1.ª edição de um livro que, ao que consta, só havia aqui; aqui era o sítio mais próximo onde estava disponível. Passa das 14h40, nem almocei, nem nada... Almoçaste? Queres vir tomar alguma coisa?"
O Pedro já tinha almoçado. Mas fomos a um café lá na Universidade Católica comer e tomar alguma coisa. Foi uma grande alegria e surpresa! É o mesmo Pedro de sempre. Simpático, amigo, ao contrário de muitas pessoas que mudam imenso com os ventos do tempo e do que lhes acontece de bom na vida.
Ia dar aula de latim às 15h30 aos seus jovens alunos seminaristas. Entretanto, falámos muito do passado, do presente, de palavras, de projectos. O Pedro anda agora no seu 1.º ano do Doutoramento em Literatura Latina, que será sobre Horácio.
Que bom foi ver o Pedro! Eu disse-lhe: "Se não fosse o raio do livro estar aqui, quando é que eu te via?"
De facto, se eu tivesse encontrado o livro com mais facilidade, era possível que eu e o Pedro não nos tivéssemos reencontrado tão cedo. Foi preciso aquele instante no corredor, em que à mesma hora e no mesmo lugar estávamos lá.

2 comentários:

  1. Eu acredito que não há coincidências. Tudo no Universo conflui para o nosso bem, mesmo que às vezes o mundo pareça estar contra nós.

    Bela escrita, Hera! E boa capacidade de "suspender" o leitor!

    Sinto a vossa falta, amigos...

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  2. Adorei este teu post, Hera! Não só pela boa estruturação da tua narrativa, mas principalmente por puder ter acesso a um pedacinho da tua vida, da tua rotina. Por momentos, estive contigo nesse teu périplo em busca de um livro. E matei as saudades...

    Beijinhos!

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