quinta-feira, 1 de fevereiro de 2007

Imortalidade

Despachem-se, que eu não tenho o dia todo – repreendeu-nos ela.
Até as crianças obedeceram às suas ordens, formando uma fila muito certinha, como ela queria. Os rapazes seguravam bolas de futebol feitas de bexiga de boi cheia de palha, espadas de pau a que todos os dias afiavam a ponta letal e elmos de cartolina com penachos feitos das crinas sedosas da égua de corrida morta, enquanto as raparigas embalavam as suas bonecas de trapo com botões a fazer de olhos. Os adultos ficavam atrás, uma fila em pé e a segunda em cima das mesas, para a máquina apanhar toda a gente. Nós, os homens, endireitámos os colarinhos pela última vez e alisámos as trunfas do cabelo, enquanto as nossas mulheres acomodavam o melhor que podiam os seios como luas cheias nos seus casacos curtos pretos antes de erguerem os filhos como troféus, até que todos cerrámos as mãos, enchemos o peito de ar e suspendemos a respiração.
Agora quietos.
Deitou um pó numa pequena vasilha, levantou-a acima da cabeça e acendeu-a. Fez-se um fogacho brilhante que espantou os cães e uma nuvem de fumo acre que nos fez subir as lágrimas aos olhos.
Nós dissemos: – Também queremos uma.
– Estas chapas são caras.
Não importava. Ela tinha-nos dito muitas vezes naquele dia que quem não existisse em forma impressa nunca existiria verdadeiramente, e tinha-nos seduzido dizendo que a fotografia até era capaz de trazer os mortos de volta à vida. Nós vasculhámos nos colchões, esventrámos os travesseiros, rapámos o fundo das arcas das nossas economias e até partimos os mealheiros dos nossos filhos, convictos de que um dia eles nos iriam perdoar o comportamento irracional, e conseguimos reunir o dinheiro.
Faça-nos viver para sempre – pedimos.
Só levou mais um minuto. Depois ela guardou a máquina, o tripé de nogueira polida, os frascos em que guardava aquilo a que chamava os químicos de revelação e, abrindo o guarda-sol, pediu-nos ajuda para ir tratar do carro. Encontrámo-lo seguindo a sombra de uma nuvem fugidia, e depois de termos mudado o pneu ficámos a vê-la afastar-se. Nessa altura quase chorámos outra vez, não por efeito do pó de iluminação mas porque nem podíamos acreditar na sorte que tínhamos por irmos viver para sempre, numa chapa fotográfica que íamos emoldurar e pendurar na parede do café, para toda a gente recordar. Sim, porque agora éramos tão imortais como o cheiro do perfume de jasmim que ela usava.
in KARNEZIS, Panos, «Imortalidade», Pequenas Grandes Infâmias, trad. Francisco Agarez, Lisboa, Cavalo de Ferro, 2004, pp. 161-162.

1 comentário:

  1. Gostei imenso. Uma beleza, este excerto sobre a imortalidade numa fotografia.

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