Em sociedade
" (...) E ao mau hábito de falar de nós mesmos e dos nossos defeitos deve acrescentar-se, como que formando bloco com ele, aquele outro de denunciar nos outros defeitos precisamente análogos aos que possuímos. Ora é sempre desses defeitos que falamos, como se fosse uma maneira de falar de nós, desviada, e que junta ao prazer de nos absolvermos o de confessarmos. Parece aliás que a nossa atenção, sempre atraída pelo que nos caracteriza, nota isso nos outros mais que qualquer outra coisa. Diz um míope de outro: «Ele mal pode abrir os olhos»; um tísico tem dúvidas acerca da integridade pulmonar do mais sólido dos homens; um homem pouco asseado só fala dos banhos que os outros não tomam; um fedorento pretende que o outro cheira mal; um marido enganado vê maridos enganados por toda a parte; uma mulher leviana, mulheres levianas; o snob, snobs. E além disso cada vício, como cada profissão, exige e desenvolve um saber especial que ninguém se importa de ostentar. O invertido detecta os invertidos, o costureiro convidado para uma reunião social ainda não conversou connosco e já apreciou o tecido do nosso fato e tem os dedos a arder por apalpar as respectivas qualidades, e se depois de alguns instantes de conversa pedimos uma opinião verdadeira a nosso respeito a um odontologista ele dir-nos-á o número dos nossos dentes em mau estado. Nada lhe parece mais importante, e a nós, que reparámos nos dele, mais ridículo. E não é apenas quando falamos de nós que julgamos os outros cegos; actuamos como se eles o fossem. Para cada um de nós existe um deus especial que lhe oculta ou lhe promete a invisibilidade do seu defeito, do mesmo modo que fecha os olhos e as narinas às pessoas que não se lavam acerca da risca e da sujidade que têm nas orelhas e ao cheiro a transpiração que conservam debaixo dos braços, e os convence de que podem impunemente passear uma e outro pelo mundo, porque ninguém dará por nada. E os que usam ou dão de presente pérolas falsas imaginam que as vão tomar por verdadeiras."
PROUST, Marcel. Em Busca do Tempo Perdido, volume II - À Sombra das Raparigas em Flor, tradução de Pedro Tamen, Lisboa, Relógio D' Água, 2003; p. 328.

Auguste Renoir - Dance at Bougival (1883)
182 x 98 cm
oil on canvas
Museum of Fine Arts, Boston, USA
Hera
Um homem aponta para uma sujidade que o outro tem no olho, ao passo que o olho do primeiro quase que salta com um objecto que entra na sua órbita. Esta é a imagem que o meu pai me oferece sempre para ilustrar a crítica injusta, e, muitas vezes, somos assim, notamos a poeira dos outros, enquanto que nós estamos quase cegos.
ResponderEliminarOscula
Salve, Hera!
ResponderEliminarMagnífico excerto!
De facto, não deve atirar pedras quem tem telhados de vidro… Olhemos primeiro para nós próprios, reconheçamos os nossos defeitos, os nossos erros, e depois tentemos aniquilá-los, ou, pelo menos, “equilibrá-los”. Só então sim, temos legitimidade para criticar, temos mesmo o dever de aconselhar. Que o único fim de qualquer crítica seja sempre o bem.
Osculum magnum.